Mira Nair e a sensação reconfortante de que algo foi problematizado
Justificado desta forma – um filme "que dá muito que pensar"; uma escolha "que pretende valorizar o papel da criatividade feminina em todas as áreas da cultura" – parece razoavelmente ligeiro, infantil até. Eram as declarações de Alberto Barbera, director do Festival de Veneza, ao anunciar há semanas The Reluctant Fundamentalist, de Mira Nair, como filme de abertura, fora de concurso, da 69.ª edição. Eis, então, na adaptação do best seller de Mohsin Hamid, o(s) fundamentalismo(s) como tema para pensar, e Mira Nair como realizadora exemplar, ela que, em 2001, recebeu o Leão de Ouro de Veneza por Monsoon Wedding.
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Justificado desta forma – um filme "que dá muito que pensar"; uma escolha "que pretende valorizar o papel da criatividade feminina em todas as áreas da cultura" – parece razoavelmente ligeiro, infantil até. Eram as declarações de Alberto Barbera, director do Festival de Veneza, ao anunciar há semanas The Reluctant Fundamentalist, de Mira Nair, como filme de abertura, fora de concurso, da 69.ª edição. Eis, então, na adaptação do best seller de Mohsin Hamid, o(s) fundamentalismo(s) como tema para pensar, e Mira Nair como realizadora exemplar, ela que, em 2001, recebeu o Leão de Ouro de Veneza por Monsoon Wedding.
As palavras de Barbera adequam-se que nem uma luva ao filme da cineasta indiana que trabalha em Nova Iorque: a ligeireza com que compacta um tema complexo, dando a sensação reconfortante de que foi problematizado, é uma versão de world cinema que é sempre uma celebração ecuménica mas que, sempre também, dança a sua ausência de estilo – ausência de cor por querer favorecer todas as cores.
Esta questão da cor vem a propósito: às tantas, o protagonista, um jovem paquistanês que acaba de triunfar em Wall Street quando acontece o 11 de Setembro (Riz Ahmed), vê-se dividido entre a escolha do campo a que pertencer: o país que adoptou, que ele admira, ou o seu país de origem, a sua herança, a sua cultura, incluído o apelo do fundamentalismo.
Do outro lado, há um jornalista que encarnou numa missão (Liev Schreiber) e essa é a personagem que representa o olhar e os preconceitos ocidentais sobre "o outro" – que é como o jovem paquistanês se começa a sentir, o que o impele a reencontrar o seu mundo, a sua "cor".
The Reluctant Fundamentalist podia ser, então, a aprendizagem do olhar: a personagem de Schreiber a não ver nada do essencial sobre a personagem de Ahmed. Mas para os dilemas serem cinematograficamente relevantes, e não serem apenas a comida para o pensamento que fornece um "filme de abertura", era preciso que o filme fosse fracturante na experiência que proporciona em vez de a servir numa bandeja. Ou seja, era fundamental que Mira Nair escolhesse, ela própria, um território cinematográfico e não refugiasse o olhar nas boas intenções.
O favorito The Master
De fundamentalismos a fanatismos – será essa a progressão em direcção a The Master, de Paul Thomas Anderson? Alguma imprensa italiana diz já que este, um título anunciado à última hora, semanas depois do anúncio da programação oficial, é o favorito do concurso, cujo júri é presidido pelo cineasta Michael Mann.
O diário Corriere della Sera diz mais: que neste duelo entre um guru de uma organização religiosa nos anos 50, interpretado por Philip Seymour Hoffman, e um acólito (Joaquin Phoenix) que quer abandonar a seita, está um filme sobre a igreja da cientologia e sobre o seu fundador, L. Ron Hubbard.
O regresso de Anderson ao cinema, depois de Haverá Sangue (2007), integra os 18 filmes do concurso: obras de Valeria Sarmiento (As Linhas de Wellington, produção de Paulo Branco, o filme que Raoul Ruiz não conseguiu concretizar antes da sua morte, em 2011, e que foi prosseguido pela companheira, recriando as invasões francesas em Portugal, no começo do século XIX), Olivier Assayas (Après Mai), Marco Bellochio, Daniele Ciprì e Francesca Comencini, Brian de Palma (Passion), Harmony Korine (Spring Breakers), Terrence Malick (To the Wonder, que se diz ser autobiográfico: o que acontece a um casal, Ben Affleck e Olga Korylenko, depois de visitarem o Mont Saint-Michel) ou os asiáticos Kim Ki-Duk (Pieta), Takeshi Kitano (Outrage Beyond), Brillante Mendoza (Thy Womb). E ainda mais um filme da trilogia Paradies, do austríaco Ulrich Seidl – depois de Amor, visto em Cannes, seguindo o despertar sexual de uma cinquentenária nas praias do Quénia, a Fé, em que uma mulher ama Jesus com todos os sentidos.
Outra produção portuguesa em Veneza, O Gebo e a Sombra, de Manoel de Oliveira (O Som e a Fúria), é exibido fora de concurso. Evoca um dos mais mal amados filmes de Oliveira, A Caixa (1994), aquele teatro do absurdo enjaulado em escadinhas lisboetas, a família como viveiro de espécies carnívoras. A espaços, O Gebo e a Sombra retoma esse mundo familiar à espera do apocalipse – mas é como se ele irrompesse de dentro. Tonalidade aguçada que várias vezes se normaliza num pequeno teatro naturalista de gestos menos severos, aconchegantes, é verdade, mas para depois voltar a afiar-se – e Leonor Silveira com uma densidade renovada, ao lado de Michael Lonsdale, Claudia Cardinale, Jeanne Moreau, Leonor Silveira, Ricardo Trêpa, Luís Miguel Cintra.
Fora de concurso, para além de Oliveira e do filme de abertura: Come voglio che sia il mio futuro?, de Ermanno Olmi, um documentário de Spike Lee na comemoração dos 25 anos de Bad, de Michael Jackson (Spike, recorde-se, realizou para o rei da pop o clip de They Don"t Care about Us); The Company you Keep, de Robert Redford; ou Witness: Libya, de Michael Mann, episódio de uma série da HBO, de que Mann é produtor, sobre a actividade de fotógrafos em cenários de guerra.
Na exploratória secção Horizontes está Three Sisters, de Wang Bing.
Tubarão em interiores
Um "advanced screening", terça-feira à noite, de Bait 3D (fora de concurso), fez com que uma sala de cinema fechada respirasse a atmosfera aberta de um drive in dos anos 50 ou 60 em que se projectasse um série B. Mas esse é precisamente o caso de um filme de tubarões que não se passa no alto mar, mas num huis clos.
Eis o ponto de partida do filme do australiano Kimble Rendall, que vem do mundo dos videoclips e integrou equipas de second unit directions na série de filmes Matrix. Como premissa, é desafiante: depois de um tsunami, várias personagens ficam enjauladas no parque de estacionamento de um supermercado onde também entrou um tubarão branco. Ele vai-os comendo, eles vão-se matando. Não é certo o que é voluntariamente paródico ou não.
O que é certo é que Rendall não é John Carpenter (isto podia ter sido Tubarão cruzado com Assalto à 13.ª Esquadra) e que o seu mundo não partilha a ética do cinema clássico e sobrepõe a isso efeitos cheios do novo chic visual. O filme é mesmo carne para tubarão. Mas é verdade que as 3D acicatam um desejo de sangue que se sobrepõe a tudo. E por isso a sala fechada abriu-se toda ao mar do guilty pleasure.