João Pedro e João Rui regressam ao lugar que imaginaram
Quando os co-produtores franceses de A Última Vez Que Vi Macau viram um primeiro alinhamento das imagens do filme, os realizadores, João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, fizeram a banda sonora ao vivo, dispararam o som dos tiros, exibiram os últimos murmúrios de quem se apagava, deram voz a intertítulos que explicavam (ou imaginavam) o que nas imagens ainda silenciosas se mostrava...
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Quando os co-produtores franceses de A Última Vez Que Vi Macau viram um primeiro alinhamento das imagens do filme, os realizadores, João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, fizeram a banda sonora ao vivo, dispararam o som dos tiros, exibiram os últimos murmúrios de quem se apagava, deram voz a intertítulos que explicavam (ou imaginavam) o que nas imagens ainda silenciosas se mostrava...
E o que mostravam? Por exemplo, uma criatura, Candy, a fugir da fatalidade em pleno Ano do Tigre e a fazer aparecer tigres por dá cá aquele gesto, uma gaiola a ser passada de silhueta em silhueta, deixando incompreensíveis cadáveres no percurso, tal como a estatueta em O Falcão de Malta (John Huston, 1941), o apocalipse a anunciar-se, o mundo a ser invadido por cães, e uma canção, You Kill Me, que Jane Russell cantou no filme Macao (1952) de Josef von Sternberg...
Era mais ou menos isso, uma série B artesanal, que faziam João Rui e João Pedro, também, durante a rodagem, ao percorrerem as ruas de Macau com hipóteses de guarda-roupa debaixo do braço para responderem com "personagens" ao que iam sugerindo as imagens que encontravam. É isso, aliás, com o que se parece A Última Vez Que Vi Macau, hoje exibido em competição no Festival de Locarno: um conjunto de imagens com histórias várias em potência, uma energia indomável que uma voice over, como a do film noir, direcciona. Como se João Rui e João Pedro estivessem lá atrás, numa cabine de som caseira, a tentar aprisionar, momentaneamente (pelo tempo de cada sessão), essa energia.
Começou por ser uma proposta de documentário, subsidiada em 2009. Continha "duas premissas", conta João Rui: um filme sobre as suas memórias de infância, o período em que este filho de um militar português viveu na antiga colónia, entre 1971 e 1974, e se perdia nas suas ruas e cheiros fugindo a chauffers e à bolha protectora colonial, isto no tempo em que os cães ainda eram comidos nos restaurantes; e ainda um filme sobre a forma como João Pedro, parceiro na vida e no trabalho, "conhecia a Ásia", ou seja, "através dos filmes e dos livros" e filtrada por aquilo que Guerra da Mata lhe contava sobre o "período mais feliz" da sua vida.
"Queríamos fazer isto desde que nos conhecemos", conta João Rui. Estão juntos nos filmes desde 1997, desde Parabéns, primeira curta de João Pedro. Desde essa altura que a direcção de arte de Guerra da Mata vem marcando o cinema de Rodrigues e a sua biografia também se vem impondo. Porque a memória da China está na origem de trabalhos de co-autoria, como a curta China China (2007) e agora os documentários Alvorada Vermelha (2011) e A Última Vez Que Vi Macau (2012).
"Quando foi a handover [a entrega de Macau à China] chegámos a ponderar a hipótese de ir lá, nessa altura simbólica. Andámos muitas vezes ali à volta, mas nunca se proporcionou", conta João Rui.
"Finalmente fomos em 2009, mas não tínhamos ideias do que seria o filme", continua João Pedro. "E no meu caso este foi mesmo o filme para o qual parti com menos coisas escritas." Esclarece o "método", que era o de não haver regras fixas: "Andávamos com um mapa, "onde é que estiveste?", tentando refazer os percursos do João Rui, de casa para a escola ou para o Clube Naval, a vida das colónias... mas nunca chegávamos ao destino final. Havia sempre algo que nos distraía. Percebemos logo que fazer mais um documentário sobre Macau não era o que queríamos. E não podia ser só um documentário sobre nós, narcísico."
Estavam a ler Thrilling Cities, de Ian Fleming, "uma encomenda de um jornal inglês sobre várias cidades, uma das quais Hong Kong, que ele achou uma seca, falaram-lhe de Macau e a sua "reportagem" acabou por ser um encontro com várias ficções", sempre com o thriller como impressão digital. João Rui salienta a forma como o Hotel Central, "o primeiro edifício a ter elevador em Macau", misto de bordel e casino, é descrito sugestivamente por Fleming "como um caminho para o paraíso", já que à medida que se ia subindo "as apostas iam sendo mais elevadas e as prostitutas mais caras". Os dois marcaram quarto para o Hotel Central. E foi ali que, "sentindo que tudo era possível", começaram a deixar a ficção entrar no documentário, filmando(-se) como silhuetas de um thriller em que um tal Guerra da Mata é chamado a Macau, 30 anos depois de ali ter vivido, por Candy, amiga que não vê há muito e que está enredada em coisas assustadoras e, inevitavelmente, nos homens errados.
Candy e a ficção são produto da memória de Sternberg, de Macao e de Jane Russell, que morreu quando João Pedro e João Rui filmavam - vêm daí o sapato e as meias, que em Macao Russell atirava a Mitchum. Do cinema de Rodrigues vem a transformista Cindy Scratch, que estava em Morrer como Um Homem (2009) mas, sentiu o realizador, não tivera então direito a um momento assim, de "antigamente", de glamour e carne - a sequência de abertura, a única filmada por Rui Poças, em que Candy/Cindy interpreta You Kill Me, canção de Russell no filme de Sternberg, é a estupenda visualização dessa coexistência entre artifício e animalidade que são o habitat das criaturas de Rodrigues. Entronca tudo isto, ainda, na biografia e nas fantasias de Guerra da Mata, que desde que conheceu Cindy Scratch nos anos 1980 se lembra de Candy Darling - para além disso, a casa que habitou em Macau aparece numa das sequências de Macao. Isto para dizer que se é impossível o regresso ao sítio onde fomos felizes, pode ser "lúdico" e partilhável o encontro com as fantasias que criámos. É tão imaginada a Macau em que Guerra da Mata viveu, porque a infância vive numa gruta de piratas, como a que Rodrigues imaginou com os filmes. No limite, as fotos de infância de João Rui que aparecem de forma delicada e breve podiam ser "inventadas".
"Havia uma necessidade de regressar àquele sítio, mas não sou uma pessoa nostálgica", diz João Rui. "Acho que as cidades têm de mudar, isso está explícito, em relação a Lisboa, em O Que Arde Cura [a sua estreia na curta-metragem, foi ontem exibida em Locarno na secção Pardi di Domani]. Macau é o que é, é o que as pessoas quiseram que fosse. A minha mágoa é que a arquitectura portuguesa, por exemplo, seja hoje um parque temático para entreter turistas. A minha Macau já era uma cidade na minha cabeça." "Se calhar", conclui Rodrigues, "reconstituísmos uma cidade imaginária."
E a Ásia instalou-se. Estará na curta que João Pedro prepara para o programa Estaleiro de Vila do Conde ("sobre uma espécie de Chinatown nos arredores de Vila do Conde, Varziela"), numa outra curta que ambos realizarão, Hotel Central, e na longa que Rodrigues filmará em 2013, O Ornitólogo.