Goodbye Emmanuelle
Quando ela disse que atravessou a vida "walking in a haze", porque a vida para ela terá sido uma paisagem com neblina por onde deslizou, demo-nos conta daquilo que "Emmanuelle" roubou a Sylvia Kristel: a voz. Antes dessa confissão ao telefone, da Holanda, quando quis jogar limpo com o tempo, como que a querer precaver arrebatamentos de ilusão, e avisou: "Agora estou mais gorda, sabe...", a voz já se tinha feito carícia.
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Quando ela disse que atravessou a vida "walking in a haze", porque a vida para ela terá sido uma paisagem com neblina por onde deslizou, demo-nos conta daquilo que "Emmanuelle" roubou a Sylvia Kristel: a voz. Antes dessa confissão ao telefone, da Holanda, quando quis jogar limpo com o tempo, como que a querer precaver arrebatamentos de ilusão, e avisou: "Agora estou mais gorda, sabe...", a voz já se tinha feito carícia.
Aquela que foi um ícone da libertação sexual dos anos 70, a pernalta com dose q.b. de androginia que deu "chic" ao "soft-porno", a holandesa de Utreque que, aos 22 anos, sentada numa cadeira de vime, atraiu multidões de casais burgueses aos respeitáveis "boulevards" parisienses anos a fio foi assim no resto do mundo: espanhóis atravessaram a fronteira do franquismo para chegarem a ela; dirigentes muçulmanos aterraram em Paris e iam a correr para as suas embaixadas provar o fruto proibido e ver a "cena do avião"; no Japão, no Japão Sylvia foi "big"...,
Sylvia Kristel falou
Não era dela a voz que se ouvia em "Emmanuelle", de Just Jaeckin (1974), nem em "Emmanuelle a Antivirgem", de Francis Giacobetti e Francis Leroi (1975), nem em "Good bye Emmanuelle", de François Leterrier (1977); nesses filmes ela foi um corpo sem voz, foi dobrada, o seu francês não era suficientemente confortável para os produtores. (Fez filmes "sérios", com Chabrol, Vadim, Robbe-Grillet, filmes em que podia ser "actriz", mas quem os viu, quem se lembra?) Ao telefone e na autobiografia "Nua", editada em Portugal pela Ambar, a voz de Kristel, 54 anos, instala-nos numa terra que é dela própria: um país nebuloso de uma melancolia que é despertada, com humor, pelo desassombro. Isso foi o que a vida lhe impôs. É este o tom de "Nua", curiosíssimo exemplo de "(auto)biografia de estrela" porque é um livro em permanente fuga aos cânones do género. E o mais curioso: se o livro é de Sylvia, porque é da sua vida e da sua memória que se trata, é um livro de Jean Arcelin "um francês que sempre sonhou ser romancista, mas foi obrigado pela avó a ir para a universidade e a tornar-se rico e é hoje CEO da Crysler", conta Sylvia. Foi ele que escreveu as palavras.
(Um parêntesis: entre as suas funções empresariais Arcelin dedica-se aos livros e chegou mesmo à lista dos "bestsellers" em França com "L'Amour dans le sang", biografia de uma jovem actriz, Anne-Charlotte Pascal, transformada em Charlotte Valandrey, e das suas vicissitudes com um transplante de coração e com o vírus da sida, isto conta-nos Sylvia; que, assume, achou que, se Arcelin conseguira um "bestseller" com a história de uma actriz, podia conseguir outro com a história de outra actriz, ela própria.)
"Quando pensei escrever a minha autobiografia, tornou-se óbvio que tinha um problema: posso cantar, razoavelmente, posso ser actriz, posso mesmo pintar, mas não sou escritora. Contactei Jean Arcelin, e ele interessou-se pela minha história. Foram 12 fins-de-semana. Em Amesterdão, Bruxelas, Paris, Nice. Em cada encontro ele entregava-me 50 páginas. Eu rasgava-as. E falava. Ele tomava notas à mão, nunca gravava. Eu nunca tinha ido a um psiquiatra. Foi, então, como fazer análise pela primeira vez. Foi um confronto permanente comigo própria. Mais duro do que eu esperava."
O que quer que se tenha passado, o resultado é singular. Nada de colecção de factos e acontecimentos, nada de revelações titilantes, nem, já agora, arrependimentos de vítima "Nua", o título, é para ser levado à letra: Sylvia Kristel aqui despiu-se de artefactos. "Quis pintar a minha história", diz.
Há, de facto, cores e tons em movimento à procura de figuração. "Jean [Arcelin] tinha a qualidade poética necessária." Ou seja: Arcelin chegou definitivamente a Sylvia. E "não é coincidência", concorda a actriz, que a qualidade onírica se é que o termo não é excessivo para a dimensão de curiosidade sociológica que é hoje "Emmanuelle" que estava nas imagens desse filme esteja também em "Nua". "Não é coincidência, essa é afinal a história da minha vida"... e Sylvia faz deslizar o tal "walking in a haze".
Quem tem idade para isso, talvez se tenha dado conta logo na altura, 1974... De qualquer forma, visto hoje é isso o que se encontra primeiro no filme "Emmanuelle": um corpo a deixar-se conduzir (sem voz própria), condenado a uma espécie de existência virtual, como um sonho erótico nunca concretizado. Sylvia deve ter-se perguntado: será que algum dia existi? "Quando era jovem, esse deslizar existencial pela névoa, essa espécie de sonambulismo, era mais notório. Com os anos adquire-se outra sabedoria. Tenho hoje os pés no chão. Mas, na verdade, a razão por que quis escrever este livro foi porque tive, recentemente, um cancro na garganta. Percebi que era mortal. E não havia nada de concreto para marcar a minha existência. Seria estúpido morrer a pensar que afinal tudo tinha sido um sonho" tudo tinha sido apenas um filme. Tínhamos dito que a vida obrigou Sylvia a acordar, por isso, e sem danificar a suavidade do tom, ela diz logo a seguir a mesma coisa de outra forma: "Tinha contas a pagar. Sou solteira. 'Tenho que tratar das minhas doenças', pensei: 'Talvez este livro seja um 'best-seller.'"
Turbilhão de acontecimentos
"Nua" navega nas águas em que a memória e as suas escolhas são um frágil elo mas é o único disponível. A narrativa não se impõe, deixa a pairar motivos. Sexo? Uma preguiça, sem culpa a mãe era católica, o pai protestante, mas os filhos iam à missa a troco de dinheiro para o cinema, e é assim que abre o livro: a adolescente a ser assediada pelo "tio" Hans, o homem que agitava uma "língua espessa, marmórea, cor-de-rosa e escura", agitando-a como "uma serpente que silva", o homem que tanto pousou o seu olhar, "como um abcesso", no corpo da jovem, que a jovem queria mesmo que esse abcesso rebentasse. E o "tio" Hans, que não era tio, mas gerente do hotel da família onde Sylvia cresceu, foi despedido.
É o máximo de sexo que vamos ter da vida deste ícone do erotismo mas é a cena original, serve de eco ao resto, aos altos e baixos "Em toda a gente os há, mas na minha vida os altos foram muito altos, os baixos muito baixos, fui de extremos", aos outros homens e às drogas.
"Sou do signo Balança, sou pela paz e pela harmonia. Mas deixei-me envolver sempre pelo turbilhão de acontecimentos." Mesmo a sua escolha como corpo de Emmanuelle, a personagem criada pela mulher de um diplomata francês, a euro-asiática Emmanuelle Arsan, a partir das suas próprias aventuras de expansão sexual, aparece como manifestação dessa força involuntária que conduziu o destino de Sylvia: Arsan era baixa e morena, Kristel era alta e delgada, não fazia o género, por isso a autora nem quis conhecer a actriz pernalta. Essa espécie de passividade que se transforma em autoridade foi, diz-se, o que tornou Kristel querida das mulheres japonesas; vibraram com uma cena do filme em que Emmanuelle se torna activa sobre o amante.
É como se falasse sobre outro corpo, como se tivesse estado ausente de si própria naqueles anos, que a actriz se descreve envolvida por uma produção caótica, sem nexo, juntando gente da publicidade e da fotografia (o mundo de Just Jaeckin, o realizador de "Emmanuelle"), a ambição de capitalizar com o sexo nas bilheteiras depois do sucesso de "O Último Tango em Paris" e a caução artística (na rodagem, imagine-se, trabalharam colaboradores de François Truffaut, actores da Comédie Française...). Ou a presenciar as enormes filas de espectadores nos Campos Elísios em Paris, o anúncio do triunfo retumbante de um filme de que nenhum dos envolvidos conseguia dizer que estava orgulhoso (hoje o discurso pode ser outro, a História deu caução).
"Foi um fenómeno que teve a ver com a época, isso é claro. E teve a ver com a política e com a alteração das regras de censura. No caso de França, as coisas mudavam com o fim da era Pompidou e o início da era Giscard d'Estaing, que permitiu concretizar os desejos do produtor de afastar o estigma e o circuito do porno. Como se quiséssemos dizer: 'isto é artístico'."
Retratos de época
É verdade: nos anos 70 disparava-se para todos os lados. Em "Nua", com uma estocada pintam-se várias coisas, a decadência daqueles anos, o desaparecimento de Hollywood...
Alain Delon, por exemplo. Sylvia cruzou-se com ele em Los Angeles na rodagem de "Airport 79" filme-catástrofe, juntando estrelas americanas cuja carreira estava em desagregação e estrelas europeias que tentavam habitar o planeta Hollywood "eurotrash", chamavam-lhes, e eles submetiam-se. Num hotel, Delon, tronco nu, pediu a Sylvia para ela pôr água a correr para o banho dele, a seguir houve ameaça de sedução e subitamente ele cortou: "Podes ir-te embora." A fria perversidade de um sedutor samurai.
Warren Beatty: "Warren tinha esse talento único de ser capaz de amar por algumas horas, com um amor de insecto de vida curta e incessantemente renovada." Parece que o conhecemos toda a vida. (Sylvia foi um episódio da vida de Beatty, e disse recentemente que quando lhe fizeram notar que Annette Bening, a mulher que fez sossegar o predador, era parecida com ela, sentiu algo próximo do consolo.) Bette Davis, materializada no tempo que um elevador demorou a subir para um "penthouse" em LA: uma mulher de olhos imensos e "tailleur" Channel a encher de electricidade o ar; mais tarde a castigar uma empregada com um jacto de água da mangueira.
"O meu objectivo ao falar deles não foi demoli-los. Eles eram ícones. Ainda o são. Tudo isso aconteceu depois das 'flores' dos anos 60. Era o tempo do sexo sem sida. Foram os tempos em que as pessoas descobriram as drogas eu, pelo menos, descobri." Voz sem sombra de nostalgia.
Assunto encerrado. "Houve sempre perguntas que me fizeram ao longo dos anos, nas entrevistas. Essas perguntas ficaram a ecoar na minha cabeça. Era importante para mim, por isso, falar dessa minha vida. Para poder continuar com ela." Good bye Emmanuelle.
"Pode dizer-se que fui usada, sim, mas também usei a situação. Não era estúpida. E era ambiciosa. É verdade: 'Emmanuelle' foi um peso enorme, fez com que a minha vida amorosa falhasse." A última coisa que ela diz: "É pena não ter hoje um marido." Logo a seguir, sem danificar o tom: "E este meu livro não ter sido um 'best-seller'."