Rize, o ballet do gueto
Às palavras de Martin Luther King, "I have a dream that one day this nation will rise up", foi o fotógrafo David LaChapelle buscar o título para o seu documentário - Rize, que abre hoje (18h, Grande Auditório da Culturgest) o DocLisboa 2005 - sobre uma onda de dança (mas "this is not a trend", "isto não é uma moda", diz-se por ali) que alastra em South Central, gueto maioritariamente negro de Los Angeles.
Chamam-lhe krumping, deriva do clowning e integra ainda o strippin", e quando LaChapelle pôs a vista nesses movimentos aceleradíssimos, quase surreais, dos miúdos do gueto, acreditou nunca ter visto energia assim, pelo menos desde os alvores do hip hop.
Não vamos entrar em pormenores confusos sobre o que é o quê, krumping, clowning, strippin", até porque o movimento está na fase em que balbucia, não há código fixo, todos os dias há um passo novo que é inventado, integrado ou que cria derivação. Mas pode-se tentar uma relação de irmandade entre as subespécies, como uma variação do mesmo. Todas têm que ver com superação de adversidades, redenção.
Algures nesta história entra a figura de um palhaço, chamado Tommy the Clown, que antes de ser preso era um dealer de South Central chamado Thomas Johnson, e que depois de sair da prisão resolveu pôr uma peruca com as cores do arco-íris e animar festas de aniversário, onde chegava fazendo movimentos desarticulados (por isso, clowning...). Ou seja, Thomas Johnson teve sorte porque não morreu e foi preso e decidiu aproveitar essa segunda oportunidade porque podia não haver terceira. "Se eu não fosse um clown seria uma pessoa muito, muito má", diz Tommy the Clown em Rize. E puxou para a sua "palhaçada" os que podiam ser potenciais recrutas do exército de gangs de Los Angeles, montou academia e tudo e a dança começou a ser arma contra a opressão, a violência e o desespero.
Alguns dos protegidos não se ficaram pelos ensinamentos do seu mentor, e começaram a inventar outros passos e uma atitude mais guerreira, tribal, com pinturas fantasiosas. Assim nasceu o krumping, que puxou para si algum passos do strippin", imitação das coreografias de striptease de tal forma acelerada que a dimensão surreal é exponenciada.
Tudo junto, com o desenvolvimento de uma vertente competitiva que serve de catarse e de substituição de outras batalhas mais letais, resulta naquilo que alguém descreveu: "É como dançar num campo de minas." É uma aproximação possível a algo que é tão vertiginoso que o realizador de Rize foi obrigado a colocar uma legenda inicial que pede aos espectadores que acreditem: as imagens não são manipuladas.
LaChapelle criou um fenómeno?
Do lado de LaChapelle, fotógrafo de moda, das estrelas e das modas, é evidente o interesse pela capacidade de superação dos corpos que está nos seus trabalhos fotográficos - onde há sempre "super-corpos", mísseis potentes. Pode-se ficar surpreendido, e até desconfiado, por este gesto de um habitué de Hollywood e seus exclusivos arredores, de um criador de cenários artificiais e gritantes, ter descido de câmara digital na mão até ao gueto para fazer um documentário, para "fazer realismo". A suspeita é legítima, até porque a pop, de que LaChapelle é participante activo, nunca é menos do que devoradora. Pode-se perguntar, por exemplo, se o krumping já existe mesmo ou se Rize está a fabricar um fenómeno. Ou seja, se não está a fazer aquilo - a temperar o underground com a ilusão da pop - a que os miúdos se recusam, como eles próprios dizem em Rize quando se afirmam alternativa ao "hip hop comercial".
São dúvidas que mesmo os admiradores das imagens de vibrante energia que estão em Rize se têm posto, aplicando maior ou menor ironia ao seu olhar sobre o fotógrafo que encena espectáculos de Elton John em Las Vegas e corre de seguida para as ruas do gueto. Tanto mais que se LaChapelle vai buscar Martin Luther King, numa legenda final de Rize, e começa o filme com imagens dos riots de Los Angeles em 1965 e em 1992 (depois do espancamento pela polícia de Rodney King), para mostrar que é sempre a mesma cantiga, a análise política dos mecanismos de exclusão é apenas balbuciada.Mas não vale a pena procurar em Rize aquilo que ele não tem. Procure-se o que ele dá: a energia e a empatia entre o cineasta/fotógrafo e as pessoas que filma, uma crença, chamemos-lhe assim - certamente encontrada na experiência de vida dos miúdos do gueto e, mais surpreendentemente, na de LaChapelle - na transformação e superação através dos trabalhos do corpo. É isso, afinal, que está nas imagens surreais das fotografias de LaChapelle. E dessa forma, não vale a pena ironizar sobre a pretensa busca de "realismo" do "Fellini da fotografia".
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Às palavras de Martin Luther King, "I have a dream that one day this nation will rise up", foi o fotógrafo David LaChapelle buscar o título para o seu documentário - Rize, que abre hoje (18h, Grande Auditório da Culturgest) o DocLisboa 2005 - sobre uma onda de dança (mas "this is not a trend", "isto não é uma moda", diz-se por ali) que alastra em South Central, gueto maioritariamente negro de Los Angeles.
Chamam-lhe krumping, deriva do clowning e integra ainda o strippin", e quando LaChapelle pôs a vista nesses movimentos aceleradíssimos, quase surreais, dos miúdos do gueto, acreditou nunca ter visto energia assim, pelo menos desde os alvores do hip hop.
Não vamos entrar em pormenores confusos sobre o que é o quê, krumping, clowning, strippin", até porque o movimento está na fase em que balbucia, não há código fixo, todos os dias há um passo novo que é inventado, integrado ou que cria derivação. Mas pode-se tentar uma relação de irmandade entre as subespécies, como uma variação do mesmo. Todas têm que ver com superação de adversidades, redenção.
Algures nesta história entra a figura de um palhaço, chamado Tommy the Clown, que antes de ser preso era um dealer de South Central chamado Thomas Johnson, e que depois de sair da prisão resolveu pôr uma peruca com as cores do arco-íris e animar festas de aniversário, onde chegava fazendo movimentos desarticulados (por isso, clowning...). Ou seja, Thomas Johnson teve sorte porque não morreu e foi preso e decidiu aproveitar essa segunda oportunidade porque podia não haver terceira. "Se eu não fosse um clown seria uma pessoa muito, muito má", diz Tommy the Clown em Rize. E puxou para a sua "palhaçada" os que podiam ser potenciais recrutas do exército de gangs de Los Angeles, montou academia e tudo e a dança começou a ser arma contra a opressão, a violência e o desespero.
Alguns dos protegidos não se ficaram pelos ensinamentos do seu mentor, e começaram a inventar outros passos e uma atitude mais guerreira, tribal, com pinturas fantasiosas. Assim nasceu o krumping, que puxou para si algum passos do strippin", imitação das coreografias de striptease de tal forma acelerada que a dimensão surreal é exponenciada.
Tudo junto, com o desenvolvimento de uma vertente competitiva que serve de catarse e de substituição de outras batalhas mais letais, resulta naquilo que alguém descreveu: "É como dançar num campo de minas." É uma aproximação possível a algo que é tão vertiginoso que o realizador de Rize foi obrigado a colocar uma legenda inicial que pede aos espectadores que acreditem: as imagens não são manipuladas.
LaChapelle criou um fenómeno?
Do lado de LaChapelle, fotógrafo de moda, das estrelas e das modas, é evidente o interesse pela capacidade de superação dos corpos que está nos seus trabalhos fotográficos - onde há sempre "super-corpos", mísseis potentes. Pode-se ficar surpreendido, e até desconfiado, por este gesto de um habitué de Hollywood e seus exclusivos arredores, de um criador de cenários artificiais e gritantes, ter descido de câmara digital na mão até ao gueto para fazer um documentário, para "fazer realismo". A suspeita é legítima, até porque a pop, de que LaChapelle é participante activo, nunca é menos do que devoradora. Pode-se perguntar, por exemplo, se o krumping já existe mesmo ou se Rize está a fabricar um fenómeno. Ou seja, se não está a fazer aquilo - a temperar o underground com a ilusão da pop - a que os miúdos se recusam, como eles próprios dizem em Rize quando se afirmam alternativa ao "hip hop comercial".
São dúvidas que mesmo os admiradores das imagens de vibrante energia que estão em Rize se têm posto, aplicando maior ou menor ironia ao seu olhar sobre o fotógrafo que encena espectáculos de Elton John em Las Vegas e corre de seguida para as ruas do gueto. Tanto mais que se LaChapelle vai buscar Martin Luther King, numa legenda final de Rize, e começa o filme com imagens dos riots de Los Angeles em 1965 e em 1992 (depois do espancamento pela polícia de Rodney King), para mostrar que é sempre a mesma cantiga, a análise política dos mecanismos de exclusão é apenas balbuciada.Mas não vale a pena procurar em Rize aquilo que ele não tem. Procure-se o que ele dá: a energia e a empatia entre o cineasta/fotógrafo e as pessoas que filma, uma crença, chamemos-lhe assim - certamente encontrada na experiência de vida dos miúdos do gueto e, mais surpreendentemente, na de LaChapelle - na transformação e superação através dos trabalhos do corpo. É isso, afinal, que está nas imagens surreais das fotografias de LaChapelle. E dessa forma, não vale a pena ironizar sobre a pretensa busca de "realismo" do "Fellini da fotografia".