O Papa não vai para o paraíso

Houve um momento - toda uma primeira parte da obra “morettiana”, via “persona” Michele Appicella ou através de outra construção dele próprio, Nanni - em que a energia de um filme era um monopólio detido apenas por alguns dos planos: os grandes-planos sobre Moretti. Era(m) ele(s) que a continha(m) e que a libertava(m). Os filmes, por isso, tinham de regressar sempre a ele. Que, intolerante, controlava os outros. Os filmes existiam numa espécie de estado policial. Vêem-se, ainda, em estado de tensão.

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Houve um momento - toda uma primeira parte da obra “morettiana”, via “persona” Michele Appicella ou através de outra construção dele próprio, Nanni - em que a energia de um filme era um monopólio detido apenas por alguns dos planos: os grandes-planos sobre Moretti. Era(m) ele(s) que a continha(m) e que a libertava(m). Os filmes, por isso, tinham de regressar sempre a ele. Que, intolerante, controlava os outros. Os filmes existiam numa espécie de estado policial. Vêem-se, ainda, em estado de tensão.


É claro que havia nisto, nesta aparente incapacidade de permitir que os outros existissem, um jogo auto-irónico, de massacre com a sua própria geração, com um passado político rasurado pela amnésia (é em “Bianca”, filme de 1984, que a personagem Michele Apicella, tornado “serial-killer” a golpes de misericórdia porque não suporta a infelicidade dos outros, conta que houve um Verão em que veio a Portugal para conhecer Otelo Saraiva de Carvalho, mas já não se lembra...).

Houve a doença de Moretti, o fluxo liberatório diarístico (“Querido Diário” e “Abril”), mas foi ao filme pelo luto do filho, melodrama de onde tinha sido excluída qualquer auto-ironia, que foi permitido fazer figura de intruso ou de página que se virava. Depois dele, e cinco anos depois, Nanni enchia “O Caimão” de géneros e registos (a comédia sentimental, o musical, o “filme dentro do filme”) parecendo procurar novo centro de gravidade. Como que testando novas figurações mas receando pelas perdas, acumulava hipóteses e fontes de energia, de tal forma que a coisa cedia e o “golpe de teatro” final - o próprio Nanni como Silvio Berlusconi - era estocada gongórica.

“Habemus Papam” é a forma (até agora) mais equilibrada de Nanni aprender a existir com os outros. Distribuindo-se pelos outros. É o filme em que um Papa (Michel Piccoli) eleito em conclave não consegue abeirar-se sequer da varanda da Basílica de São Pedro para saudar os que têm fé. Foge, deambulando anonimamente por Roma.

Não é inédito: o padre Nanni dava por encerrado o ritual, em “A Missa Acabou” (1985), partindo para a Terra do Fogo por concluir que ninguém precisava dele. Mas esse padre, de ambições ainda totalitárias, podia ser outra coisa qualquer. E o filme nem era sobre a Igreja Católica. Era a crónica de uma geração que se esqueceu. Já Piccoli, como Cardeal Melville, é um Papa em perda, acometido da angústia paralisante de que o seu sacerdócio para nada serve. As luzes apagaram-se, a realidade já está ao longe, os cardeais encerrados num conto de fadas. Às escuras, como os anões sem Branca de Neve e sem Rainha Má - já nem há inferno, só há deserto.

Um psicanalista (Moretti) é chamado para tratar deste pânico papal. A princípio causando dúvidas no Vaticano a aproximação do inconsciente à fé, as duas visões acabam por ficar reféns do mesmo jogo - o psicanalista fica condenado a organizar um torneio ecuménico de voleibol com os assustados e suspensos cardeais.O Vaticano como cenário para um burlesco emudecido - há diálogos, mas a coreografia entre planos e cenas podia prescindir deles, pelo desejo de silêncio de “Habemus Papam”. A ele, ao Papa de Piccoli, a liberdade com a dúvida gloriosa. Neste filme de um ateu que foi criado por católicos, a psicanálise (Moretti e a tentação ditatorial da sua “persona”) é mais maltratada do que a Igreja. O realizador não se deixa prender pela episódica “realidade”, suspende-a - passa ao lado de denúncia de escândalos de pedofilia ou de polvos financeiros, por exemplo.

Enche-se de uma ternura humanista que em momentos temos a tentação de chamar “rosselliniana” (por causa de “Francesco, Giullare di Dio”). Nesse equilíbrio com os outros, Moretti permite que com Piccoli entre Manoel de Oliveira para o seu filme. Quando Piccoli, respondendo a uma psicanalista, diz que foi em tempos actor, tanto está a falar dos rituais de teatralidade no Vaticano como do filme de Oliveira em que ele, como actor, desistia e ia para casa. “Je Rentre à La Maison” (2001) não está aqui, contudo, como citação cinéfila, coisa estranha em Moretti. Está como mais mundo. Como uma contiguidade de que o cineasta hoje precisa. A dúvida liberta.