Diabo de filme

Sobre o "serial killer" - propôs numa entrevista Kim Ji-woon - haverá um modo oriental de ver e um modo ocidental. "No Ocidente, o foco são os aspectos individuais do bem e do mal. Na Ásia, interessa mais o ambiente social de que se é parte." Será como olhar para uma fotografia e recortar mentalmente quem ali aparece, destacando-o; ou, pelo contrário, aguentar o olhar na "big picture" e tirar disso as consequências.

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Sobre o "serial killer" - propôs numa entrevista Kim Ji-woon - haverá um modo oriental de ver e um modo ocidental. "No Ocidente, o foco são os aspectos individuais do bem e do mal. Na Ásia, interessa mais o ambiente social de que se é parte." Será como olhar para uma fotografia e recortar mentalmente quem ali aparece, destacando-o; ou, pelo contrário, aguentar o olhar na "big picture" e tirar disso as consequências.


Dê-se desconto ao que há de redutor na oposição. Mas contemos com ela para pensar no tráfico de influências, no que se comunica, entre cinema coreano e cinema americano: na forma como o primeiro tem ido buscar ao segundo algo que depois devolve, coisa outra, criação que parece original e tão idiossincrática que sempre que o segundo se quer, depois, aproveitar-se dela, porque ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão, o "remake" fracassa - foi assim com o "thriller" de acção de Hong Kong de ontem, nos anos 80/90 de John Woo e dos outros, é assim no cinema coreano de hoje, com os "thrillers" psicológicos-a-caminho-do-terror-e-do-fantástico de Bong Joon-ho ("Memories of Murder", "The Host", "Mother"), Park Chan-wook ("Sympathy for Mr. Vengeance", "Oldboy", "Sympathy for Lady Vengeance", "Thirst"), Na Hong-jin ("The Chaser", "The Yellow Sea"), Kim Ji-woon ("A Tale of Two Sisters", "A Bittersweet Life", agora "I Saw the Devil"), e outros. Há uma corrida entre estes coreanos, uma competição para ver quem chega aos extremos, é verdade. Mas o "horror porn" fica sempre de fora porque o que estremece ali é uma tragicomédia humana. Para o qual o cinema coreano olha de frente - e quando isso acontece é o cinema que olha em frente.

"I saw the devil", pois então. Começa com a encarnação do próprio diabo, um condutor de autocarros que se transfigura numa das criaturas mais escabrosas que a terra criou (um susto, o extraordinário Choi Min-sik, actor de "Old boy", que com este filme interrompeu uma pausa cinematográfica). Numa cave que é o cenário de uma fábula de horror, o condutor de autocarro dedica-se a práticas e gestos que são menos os de um médico legista e mais os de alguém que amanha peixe: decepa e esventra jovens vítimas.Mas é então que o imprevisível diabo se cruza com a namorada grávida de um polícia (Lee Byung-hyun)... câmara de horrores, facas, orelha, cabeça... e o diabo encontrará companhia: na pessoa do polícia, que promete vingar-se, devolver-lhe 10 mil vezes a dor que lhe foi causada.

Não estão a ver: é ainda a primeira hora do filme e inicia-se uma corrida de estafetas, um dar e receber a partir do momento em que o céu se rasgou. Mas repare-se na sequência em que a polícia e o noivo encontram os restos da vítima, na música que inunda, na barafunda burlesca dessa noite (toque coreano: horror e humor), como um épico "ocupado". Como se Kim Ji-woon nos quisesse dizer, logo ali, que há e haverá sempre pior - "Que mundo louco", exclamará alguém. É nesse momento, no (nosso) encontro com a consciência do filme, essa "big picture" tragico-cómica que ali tocamos e que não mais nos larga, que passamos a estar implicados no "i saw the devil".

Quem é que vê o diabo? O "serial killer" viu-o, foi tomado por ele - é ele. O polícia vingativo dá-lhe concorrência, arriscando ficar à altura: a catarse de lágrimas não o livra de ter "visto" - é ele. E o espectador não fica incólume, por aquilo que vai desejando, por quem vai torcendo no despique - é ele, sempre que vê. "I saw the devil" vai sendo uma experiência saturada de ressonâncias em que, para refazer o início deste texto, interessa menos se Kim Ji-woon se inspirou em David Fincher, nos Coen (o período "negro" inicial, respigado em "Este País não é para Velhos") ou no Tarantino de "Cães Danados" e mais o que ele faz com isso. Tal como assistir ao despique virtuoso e ao sadismo cinematográficos - falamos de Kim Ji-woon, que depois de se ter esmerado como cineasta-"serial killer" teve de cortar cenas da versão estreada na Coreia - é uma experiência de amargura moral. Há uma sequência em que, depois de um momento alto de horror e sangue, "I saw the devil" parece procurar refúgio. Como que para dar descanso ao espectador e a si próprio, suspende-se nas linhas brancas de uma auto-estrada pela noite... Ou não: é um alvoroço interiorizado, um horror, não há descanso aqui. Diabo de filme. (Que o diabo existe, prova-o o facto de Kim Ji-woon estar neste momento a preparar a sua experiência americana).