Conto de inverno

Talvez Abu Grahib, Guantanamo - as fardas cor de laranja - ou o Iraque ou o Afeganistão, "reconhecemos" da televisão, da net ou de "Standard Operating Procedure", de Errol Morris, ou de uma ficção política mais ou menos "action movie" da Hollywood pós-11 de Setembro. Americanos procuram "terrorista", o fugitivo é identificado, a coisa, em termos cinematográficos, é a "standard operating procedure". São os 15 minutos iniciais do filme do polaco Jerzy Skolimowski, e é verdade que se experimenta estranheza: por ser tão imediatamente reconhecível, por a coisa nos ser entregue de bandeja.

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Talvez Abu Grahib, Guantanamo - as fardas cor de laranja - ou o Iraque ou o Afeganistão, "reconhecemos" da televisão, da net ou de "Standard Operating Procedure", de Errol Morris, ou de uma ficção política mais ou menos "action movie" da Hollywood pós-11 de Setembro. Americanos procuram "terrorista", o fugitivo é identificado, a coisa, em termos cinematográficos, é a "standard operating procedure". São os 15 minutos iniciais do filme do polaco Jerzy Skolimowski, e é verdade que se experimenta estranheza: por ser tão imediatamente reconhecível, por a coisa nos ser entregue de bandeja.


Se calhar não estranhamos tanto o facto de o cineasta polaco se estar a preparar para fazer um "action movie" à americana, como o facto de o estar a fazer a despachar. Está. É um falso começo, esse. "Matar para Viver"/ "Essential Killing" só começa a ser essencial quando o prisioneiro (Vincent Gallo) é um homem em fuga. Ou seja, quando o filme foge do género "thriller" político - e sobre a política Skolimowski já disse que a colocou ao largo do seu cinema, pelo menos em termos explícitos, desde que, em 1967, foi obrigado a sair do seu país na sequência da proibição de "Hands Up!", que ele reclama ser o seu melhor filme e que é o terceiro capítulo de uma espécie de trilogia formada com os anteriores "Identification Marks: None" (1964) e "Walkover" (1965).

Sobre a história pessoal do fugitivo e sobre a História, só veremos, então, assombrações. "Essential Killing" é a espaços assaltado por elas, pesadelos do filme que não é e não quer ser - como se este filme sonhasse. Mas é essa falsa partida e as assombrações que se seguem - por exemplo, o mundo privado da personagem do muçulmano Gallo, convocações sensuais, quentes e doces à la Paradjanov - que trabalham em "Essential Killing", conto de inverno rigoroso, cruel (mas também doce) sobre a sobrevivência, a sua natureza de coisa em fuga.

Vincent Gallo e a natureza, então. Sem diálogos - o que não é o mesmo que dizer sem vozes. Qualquer coisa da ordem da negociação: um fugitivo na paisagem inóspita, gelada (como Robert Reford no substimado "Jeremiah Johnson", que Sidney Pollack filmou em 1972), um relato carnívoro de uma iniciação, que se cumpre (como esse sublime "Deep End", que Skolimowski filmou em Londres em 1970). Gallo resiste, sobrevive, entrega-se, é reconhecido pelos seus pares, os animais, numa sequência (de algum apaziguamento, de irremediável entrega) que podia ser a de um Conde Drácula com os lobos. Lembrámo-nos, também, da destruição da habitual pirâmide de prioridades da figuração que propôs "Le Quattro Volte", de Michelangelo Frammartino, ao fazer desaparecer os diálogos e (progressivamente) os humanos e permitindo que o filme fosse invadido por cabras. Sim, mas no caso de "Essential Killing" a questão é de metamorfose: Gallo, que como personagem com narrativa pessoal já começa o filme razoavelmente nu, vai sendo espoliado do resto da sua história humana - e "Essential Killing" vai sendo isolado da História - para iniciar uma aventura de transformação, sem retorno, pela natureza. O que vemos no fim pode ser a sua morte. Mas Skolimowski mostra algo que se parece com outra forma de vida. E eis como aquilo que começou a parecer-se com um "triller" de acção fugiu de forma irremediável para o mundo da fábula. Selvagem e lírica, porque é de Skolimowski que se trata. Essential filming.