Os medos de Jane no circo de Jacques
Sergio Castellito trata Jane Birkin a chicote, isto é, os seus medos, o luto por uma relação destruída, algo próximo de um masoquismo silencioso, tudo isso é rasgado como uma folha de papel de jornal que foi cruzada a alta velocidade por um chicote - se isto parece um número de circo ou um jogo S&M, é mesmo um número de circo.
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Sergio Castellito trata Jane Birkin a chicote, isto é, os seus medos, o luto por uma relação destruída, algo próximo de um masoquismo silencioso, tudo isso é rasgado como uma folha de papel de jornal que foi cruzada a alta velocidade por um chicote - se isto parece um número de circo ou um jogo S&M, é mesmo um número de circo.
Jane regressou, 15 anos depois de ter partido, à tenda familiar, debaixo da qual sepultam recriminações, culpa e um amor. Nesse reencontro cruza-se com um "clown" (Castellito), que começa por ser o homem que lhe põe o motor do automóvel em funcionamento - eis a primeira pantomima de "36 vistas do Monte Saint-Loup", de Jacques Rivette - e depois vai ser o homem que põe novamente em andamento a máquina de alguém que já se habituara "à doença", à avaria.
É aquele masoquismo silencioso da personagem de Birkin, 64 anos, no novo filme de Rivette. É o mesmo masoquismo silencioso de Liz, a personagem que Birkin interpretava num anterior filme de Rivette, "A Bela Impertinente" (1991), em que um pintor (Michel Piccoli), que vivia com a mulher e modelo (Birkin), recomeçava o trabalho numa tela que abandonara usando um novo modelo (Emmanuelle Béart) como inspiração. Não sabemos se há masoquismo, recriminações ou amargura, mas as palavras de Jane sobre o facto de os cineastas procurarem nela a mulher em sofrimento ouvem-se como silêncio. Ei-la, Jane, cujo rosto teima em não se decidir entre a infância e a velhice.
"Nunca vi esse filme ["A Bela Impertinente"]. Quando estreou, o meu pai e Serge [Gainsbourg, de quem foi companheira] tinham morrido há pouco tempo e eu fechara-me em casa com Lou [Doillon, sua filha e do cineasta Jacques Doillon], persianas corridas e tudo. Depois disso nunca pensei que Rivette se voltasse a lembrar de mim [para "36 vistas do Monte Saint-Loup"]. Quando trabalhamos para um realizador, torna-se cruel sentirmos, ou mesmo pensarmos nisso, que ele se esqueceu de nós.
Com Doillon fiz 'La Pirate' [1984] e mais três filmes de seguida e ele deixou de me chamar para os filmes. Não dava sequer para ter ciúmes porque as outras actrizes eram todas mais novas, não havia competição possível. Rivette falou-me neste filme há mais de quatro anos, mas entretanto teve dificuldades em arranjar dinheiro para o projecto. Mas eu nem sequer sabia qual era o meu papel. Nem se era o principal. E fiquei surpreendida. Não sabia nada. Rivette deu-me uma folha de papel com a cena no cemitério em que eu pedia desculpa a alguém, em que contava que tinha sido mandada embora" - falava dos mortos e com os mortos, falava do confronto com o pai, o patrão do circo, por causa de um dos seus artistas e paixão dela. "Era apenas com essa folha de papel que eu podia imaginar a minha personagem no filme: que tivera uma relação amorosa, que me tinha ido embora. Mais nada. Rivette procura criar para os actores situações de insegurança, em que não saibamos onde estamos. É isso o que ele procura, a vida."
E sobre isso - o filme - Jane Birkin diz que se deixou conduzir. E ao dizê-lo parece que abraça uma (a sua?) fatalidade. Como se a coreografia da coisa, por exemplo das cenas entre ela e o seu "partnaire", pertencesse apenas a Rivette, ou ao italiano Castellito. Como se ela não tivesse tido nada a ver com a progressiva ocupação do filme pelos tempos do circo, coisa que começa como um jogo de ecos e de transferências - os medos das personagens "na vida" e os medos na arena "do espectáculo" - e acaba sendo uma efectiva conquista e tomada de posse.
"Eu não fiz nada. Jacques divertia-se muito com aquela sequência inicial em que Sergio concerta o meu carro. É uma coisa chaplinesca. Rivette" - um Rivette de 82 anos "muito diferente" daquele que encontrou em "A Bela Impertinente", diferente não propriamente "durante as cenas, mas entre as cenas, mais perdido... e nunca come" - "gosta muito desse lado de 'clown', apesar da sua reputação intelectual. E por isso permitiu que Castellito desenvolvesse isso. Essa coisa de o tempo das cenas de circo começarem a ditar o tempo das cenas do filme percebia-se logo na rodagem. Jacques filmou muitas cenas de espectáculo circense, que depois deixou de fora, ficou só com as cenas dos 'clowns'. Ele gosta muito dessa forma de expressão: essa arte de fazer rir e o medo de não conseguir fazer rir."
O medo, principalmente.