João Canijo: “Acho que isto não tem cura”
E subitamente, do meio da sua investigação do Portugal contemporâneo - as ficções "Ganhar a Vida" (2001), "Noite Escura" (2004), "Mal Nascida" (2007) e, a próxima, em produção, "Sangue do meu Sangue" -, irrompe um documentário. Sobre o Portugal que a propaganda do Estado Novo ficcionou nos anos 40. "Foi uma encomenda", diz João Canijo.
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E subitamente, do meio da sua investigação do Portugal contemporâneo - as ficções "Ganhar a Vida" (2001), "Noite Escura" (2004), "Mal Nascida" (2007) e, a próxima, em produção, "Sangue do meu Sangue" -, irrompe um documentário. Sobre o Portugal que a propaganda do Estado Novo ficcionou nos anos 40. "Foi uma encomenda", diz João Canijo.
Mas quando se vê "Fantasia Lusitana" logo se percebe que Canijo fez sua uma proposta exterior: um olhar sobre uma "noite escura" portuguesa. Imagens de arquivo como um espelho: cai a redoma protectora do passado, as imagens estão próximas, o suficiente para interpelarem o presente. Começa por ser anedótico, mas a meio da viagem somos capazes de nos vergar perante o peso. Canijo, esse, diverte-se. Sem a ficção e sem pacto com personagens, atira-nos: "tomem lá". Podemos falar em cinismo, mas quase sempre o cinismo é cinematograficamente produtivo.
O filme é lançado hoje em sala em Lisboa e Porto. Depois circulará...
Este documentário é uma encomenda. Como surge?
Foi uma encomenda do produtor João Trabulo. Telefonou-me um dia a dizer que tinha um projecto em andamento e que gostava que fosse eu a realizá-lo. A ideia, romântica, era fazer um documentário, suponho eu que mais convencional, sobre a passagem de refugiados famosos por Lisboa durante a Segunda Guerra. Foi com esse tema, e com os nomes dos refugiados famosos, que aliás se tinham conseguido já apoios apalavrados.
Pensei, e disse que sim, desde que não fosse bem isso. Desde que fosse mais a possível marca, ou ausência de marca, que esses refugiados deixaram em Lisboa. Lembrava-me das histórias que os meus pais e os meus avós me contavam, das mulheres de perna traçada a fumar na [pastelaria] Suíça [Rossio, Lisboa] e coisas assim. Interessava-me relacionar o salazarismo, o Portugal profundo, com os estrangeiros. Evidentemente que não havia material que documentasse essa relação.
De qualquer forma, o filme passou a ser meu, e ninguém me impôs o que quer que fosse. E logo na primeira sinopse já "Fantasia Lusitana" nada tinha a ver com a passagem de refugiados. Já tinha mais a ver com uma ideia minha, algo que eu intuía que era verdade: os dois níveis de realidade em Portugal, o mundo em guerra e a fantasia do país neutral, o mito criado por Salazar.
Descobri há anos uma identificação entre aquilo que penso e as coisas que o [filósofo] José Gil escreve sobre Portugal. Por isso nada melhor do que falar com o senhor. Fizemos um alinhamento de imagens, quase duas horas, daquilo que se conseguiu encontrar [nos arquivos], e fomos mostrar-lhe. Ele ficou entusiasmado e disse algo que resumia tudo o que eu pensava, os dois níveis de realidade. O filme é sobre isso.
Há uma parte desse projecto dos refugiados que ainda passa pelo filme, com os testemunhos de Alfred Döblin, Erika Mann e Saint-Exupéry...
... sim, isso foi resultado de pesquisa de alguém que se formou em História em França e que estava a trabalhar para o João Trabulo, o Hugo dos Santos. Durante meses pesquisou tudo sobre a época e o tema. Fazia a pesquisa, mostrava o que tinha encontrado, em imagens ou textos. Passou semanas, por exemplo, no Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (ANIM), fazia resumos do que lá estava, e a partir daí fazíamos a pre-selecção, que tinha um custo, para encomendar.
Sobre a dupla realidade de "Fantasia Lusitana"... o espectador começa por ser embalado por uma certa ligeireza, o lado anedótico desse Portugal. Depois a coisa torna-se densa...
... era essa a ideia: isto é tudo muito bonito, mas há a realidade. Que não era nada bonita...
Nos testemunhos, os estrangeiros que passaram por cá dizem que lá fora há as bombas, é verdade, mas prefeririam estar lá e não aqui, no Portugal de uma alegria triste e falsa. É nessa altura que começamos a suspeitar, também, que quer dizer-nos algo sobre hoje. É isso que faz a ligação com a sua obra de ficção por exemplo...
Lógico. Tirando a retórica do Salazar, e aquela maneira de falar de propósito para que não se percebesse nada daquilo que dizia, os mitos a que ele se refere continuam a ser os mesmos. O dr. Cavaco di-los...
Por exemplo...
Há aquele discurso sobre o verdadeiro espírito português, a humildade, a disciplina... O dr. Cavaco continua a dizer a mesma coisa. O professor do liceu do meu filho tinha 30 anos mas ainda lhe dizia que Salazar foi muito bom porque impediu que Portugal entrasse na guerra. Isso foi uma das razões determinantes para eu aceitar fazer este filme, aliás. Claro que o meu filho, que tinha 14 anos, já sabia que não tinha sido assim, mas o professor de 30 acreditava que sim. E que havia mais segurança [naquela altura]. O Paulo Portas continua a dizer que há pouca segurança...
Quando estava a escrever a nota de intenções do "Mal Nascida", saiu "Portugal, medo de existir" do José Gil. O que eu estava a tentar escrever nessa nota era aquilo, dito por alguém que passou mais anos a pensar sobre as coisas e que as sabe exprimir melhor do que eu. E antes de ler o livro já tinha como epígrafe da nota uma frase de um taxista de Lisboa que me levou a um restaurante. Disse-me que o restaurante era muito bom, que, pois claro, não há cozinha como a portuguesa, e depois, claro, que o cozido à portuguesa não há em mais nenhuma parte do mundo. Eu não lhe disse nada, mas podia dizer que o prato nacional madrileno é o cozido, há em todo o mundo, depende é dos enchidos que lá se metem. Mas o mais genial foi quando disse: "Veja lá que eles lá fora nem sequer sabem o que é um caldo Knorr". Como diz o José Gil, pior do que a ausência de forma é a arrogância de se julgar forma. É isto: uma falta de educação secular. Um problema que não está remediado, antes pelo contrário, está agravado. A massificação do ensino foi mal feita, a falta de educação é maior do que no meu tempo do liceu. Isto não é saudosismo. É que já nem as referências mitificadas os miúdos da idade do meu filho têm. E a ignorância dos professores é muito maior do que a do meu tempo. Tínhamos uma vantagem: havia muitos professores que eram da oposição e que por militância ensinavam o que não vinha nos livros. Isso já não acontece.
Nunca me vou esquecer que quando estava num daqueles bairros sociais na rodagem de "Ganhar a Vida", em França, me apareceu um daqueles meninos que uns anos depois andariam a queimar carros - um daqueles a quem o [Nicolas] Sarkozy chama "a ralé". Esse miúdo perguntou-me sobre o que é que tratava o filme, eu disse-lhe que era vagamente inspirado na "Antígona". Ele respondeu: "Ah, Racine". Não haveria nenhum puto português do mesmo meio que fosse capaz de dizer isso. Ele era árabe, tinha feito o liceu em França. A ignorância e a iliteracia enraizadas [em Portugal] talvez só tenham equivalente no interior dos Estados Unidos da América.
É esse seu olhar que é traumatizante em "Fantasia Lusitana". Os filmes que utilizam imagens de arquivo colocam o espectador numa posição segura: o passado protege-nos. Nas imagens de "Fantasia Lusitana", pelo contrário, as pessoas parecem estar próximas de nós, ou nós próximo delas.
Senti isso.
Aqueles "travellings" no Chiado, por exemplo...
Essas imagens não são portuguesas...
Se calhar por isso...
Essas imagens são de um estrangeiro que passou por Lisboa e filmou às escondidas . São "travellings" dele dentro do eléctrico...
Senti essa proximidade e senti outra coisa, que o José Gil também sentiu; que essas pessoas estavam mais vivas do que as de agora. Provavelmente porque aquela multidão que se vê na Rua da Madalena... aquilo não são bem portugueses. A menina que sai do passeio e que vem até a meio da rua, vê-se que não é portuguesa.
Como é que se sente em Portugal?
Estou a ficar velho, se fosse mais novo continuava a pensar em emigrar. Deixei de ter televisão há dois anos, só vejo filmes à noite e há dez anos que só leio o "El Pais". Não saio, sou eremita. O que se passa connosco? Acho que está a resvalar a falta de capacidade e de classe dos políticos portugueses. Apesar de tudo, há uma grande diferença entre o Sócrates e o Guterres. Acho que isto não tem cura. Mas interessa-me muito pouco...
Deve interessar alguma coisa, de outra forma não teria feito o filme...
Eu tenho a teoria de que o Salazar é um produto da Igreja portuguesa. Há uma história que me contou um padre jesuíta que me ajudou na investigação do "Ganhar a Vida", em França. Quando o indigitaram para trabalhar com os imigrantes portugueses em França, ele veio a Portugal para aprender a falar português - com um sotaque à Porto, porque foi ali que aprendeu. A coisa que mais o chocou foi verificar que em Portugal não havia um curso de Teologia. O clero português não precisava, sabia tudo. Claro que isso continua a interessar-me.
Salazar era muito esperto. Aqueles discursos são extraordinariamente bem escritos - para não se perceber o que ele está a dizer... tem plena consciência de que está a falar para ignorantes que gostam de ouvir o senhor falar bem. No fundo, são lugares-comuns que parecem ideias metafísicas.
A propósito... aquele excerto com a voz do locutor Fernando Pessa a dizer que lá fora os ruídos das sirenes e das bombas são como as cerejas, umas coisas puxam pelas outras... Há um mito Pessa, uma figura dos tempos heróicos, a relatar a guerra de Londres...
... o meu pai contava-me que Portugal ligava a BBC para ouvir o Fernando Pessa fazer a crónica diária da guerra.
... mas aquela ligeireza é chocante...
... é uma idiotice total...
Contrasta com a solenidade com que se falava do mundo português: as imagens finais, por exemplo, no Cristo Rei.
Essa coisa do Fernando Pessa é como uma capa do "Século Ilustrado": uma menina agarrada à bóia que parece uma bomba mas é um golfinho, desce-se pelas perninhas da menina abaixo e cá em baixo diz: "Bombardeamento de Londres. Toda a reportagem no interior". Essa imagem é genial. A guerra era outro mundo. Não tinha nada a ver connosco, para quê preocuparmo-nos com a guerra?
Não há imagens em movimento, só fotografias, do final da guerra com Portugal feliz a comemorar. Lembro-me de o meu pai me contar a felicidade que foi. Mas uma semana depois [do fim da guerra], toma lá com a manifestação de apoio ao Salazar. Foram rapidíssimos a fazer...
E a voz "off" dessas imagens: o mundo tem o dia D, Portugal tem o Dia S...
É a voz desse grande talento natural para a comicidade que era António Lopes Ribeiro. Ele era avarento; para não pagar a um locutor, fazia ele as locuções.
O que pensa de António Lopes Ribeiro?
Acho que o filme mostra. As comédias dos chamados anos de ouro do cinema português são contemporâneas dos filmes de Sacha Guitry... a comparação diz tudo.
O mito da "idade de ouro" do cinema português permanece...
Os filmes eram muito maus, muito mal representados, muito mal feitos. Nem eram grandes sucessos de bilheteira, como se diz. Permanece esse mito, tal como permanece o mito de que Salazar nos salvou da guerra. O que não é verdade. O que é verdade é que nem os alemães nem os ingleses estavam interessados que entrássemos na guerra. Dava mais jeito ter esta coisa minúscula no Atlântico como porto franco onde toda a gente podia espiar, essa plataforma giratória para várias coisas...
Que transformou o país numa espécie de bordel...
Exactamente
Quando se faz uma ficção há um pacto com as personagens: não são boas, mas não são totalmente más. Aqui não há personagens, pode dar livre curso a amores e ódios. Sente-se essa coisa de ir cercando o espectador, de lhe chapar com as coisas à frente. Há aquele momento em que a nau "Portugal" da Exposição do Mundo Português naufraga...
... não percebo como é que aquilo passou... Mas explico porquê: não podiam esconder que a nau tinha virado, de forma que houve uma reportagem seguinte, maior, sobre a capacidade genial da engenharia portuguesa de pôr de novo a flutuar a nau "Portugal". Não foi possível meter essas imagens no filme. Acredito que ao ver essas imagens do naufrágio, "e deu-se o acidente", fique toda a gente de boca aberta.
Ainda a propósito do cinema português: aparece alguém, um estrangeiro, a dizer que o cinema em Portugal tem todas as condições para ser fantástico, porque aqui há bom tempo...
Por causa do clima, das paisagens virgens, dos monumentos extraordinários, do folclore riquíssimo, e principalmente da paz e da calma. Coisas que ainda há pouco tempo repetiram quando quiseram montar uma cidade do cinema ali no Algarve. Tirando o folclore, as palavras foram as mesmas...
Disse que já não se importava com o país... Vamos acreditar que este filme acontece agora não por acaso.
Se fosse há dez anos, seria mais virulento, e teria menos humor. Agora, apesar de tudo, é mais distanciado.
Mas fala muito nele com o silêncio. Mais até do que nas suas ficções...
Já perdi a raiva contra o país. Agora as coisas são como são.
Em que momento sentiu raiva?
Na altura do "Ganhar a Vida" sentia bastante. Depois lá perdi um bocadinho, quando percebi que os emigrantes não eram aquilo que eu pensava. Eu achava que eles se tinham mantido tipicamente portugueses, essa ignorância arrogante de se acharem melhores do que os outros e ao mesmo tempo inferiores. Percebi que tinham mudado. O que não os impede de, depois de 30 anos em França, onde se transformam em pessoas diferentes, voltarem a Portugal e passados uns anos serem iguais ao que eram antes de irem para França.
Mas deixei de sentir revolta. Deixei de sentir que era injustiçado, que o país era uma treta. O país é o que é. Agora [para o novo filme, "Sangue do meu Sangue"] estou a descobrir uma parte do país que toda a gente sabe que existe mas ninguém conhece: a periferia de Lisboa, uma coisa assustadora. É a miséria humana total. As urbanizações construídas na periferia... ninguém acredita. Quando um amigo meu viu as imagens que fiz, disse que lhe fazia recordar o Cairo no seu pior. Os bairros de lata são melhores do que as urbanizações clandestinas. E as ubanizações clandestinas não são só urbanizações de pequenas vivendas: são ruas de prédios inteiros em escadinhas, onde vivem milhões de pessoas. É mais deprimente do que a cintura de favelas à volta da Cidade do México, porque aí ao menos há um espaço individual para as pessoas. Aqui não. É impressionante, a fealdade. A corrupção autárquica em grande. Como é que se consegue viver ali?
Como é que, estando mergulhado nessa fealdade, como diz, não se exponencia, ao contrário do que diz, a sua crise em relação ao país?
Porque quanto mais vou vendo, mais vou tratando isso como uma coisa igual às outras. O meu próximo filme é uma história sobre o amor incondicional, como "Mal Nascida" era uma história sobre a falta de amor. E como é que o amor pode sobreviver nas zonas onde vive neste momento 80 por cento da população mundial, este tipo de subúrbios.
Este subúrbio português é pior do que o de Paris porque é clandestino e foi feito à custa da corrupção camarária, sem planificação. Não há via comunitária, ao contrário, por exemplo, das Fontainhas dos filmes do Pedro Costa. Não há comparação, em termos de qualidade de vida e construção, entre o bairro social em França e o subúrbio de compra e aluguer em Lisboa. Mas interessa-me, como disse, muito mais a universalidade do que a idiossincrasia.
Um documentário, então, como "Fantasia Lusitana", é a sua hipótese de dar um pontapé...
Sim, teve essa função: tomem lá, entendam como quiserem. E de propósito não tem explicação. O meu filho tem 16 anos, gostou muito, mas disse que era preciso voz "off". Mas desde o princípio houve essa recusa. O silêncio é mais eloquente.
Há uma coisa que percebi ao fazer o filme: o mito da gloriosa História de Portugal está enraizado na cultura portuguesa. Estamos convencidos de que temos uma História gloriosa. Isso percebe-se ao ver a Exposição do Mundo Português: continuam a ser esses os mitos dos miúdos do liceu. E não foi nada disso, não houve implantação em lado nenhum. Gosto muito da frase do Fernando Pessoa que aprendi quando tinha 15 anos: o mal em Portugal é o excesso de civilização dos incivilizados. No fundo, é igual a frase do José Gil: pior do que a ausência de forma é a arrogância de se tornar forma.