Paul Newman: alguém lá em cima devia ter gostado mais dele

Muitos sabem de que cor eram os olhos de Paul Newman, poucos sabem o que eles viram. O Estoril Film Festival programou uma homenagem a um singularíssimo cineasta, um muito discreto cineasta, um grande cineasta.

Foto

Os olhos azuis de Paul Newman vieram primeiro que tudo nas notícias que, não tão subitamente assim, em Setembro passado, fizeram a necrologia.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Os olhos azuis de Paul Newman vieram primeiro que tudo nas notícias que, não tão subitamente assim, em Setembro passado, fizeram a necrologia.

Mas custou ver a filantropia e os molhos para salada, com a marca "Newman's Own", serem colocados à frente do que esses olhos viram – e a forma como eles viram – entre 1968 e 1987.

Foi entre esses anos que, com "Rachel, Rachel", "Sometimes a Great Notion", "A Influência dos Raios Gama no Comportamento das Margaridas", "The Shadow Box", "Harry and Son – O Confronto" e "The Glass Menagerie – Algemas de Cristal", uma das maiores estrelas do cinema americano foi também cineasta, um singularíssimo cineasta, um muito discreto cineasta. Pouca gente sabe.

A ausência deste pedaço da sua vida na generalidade dos comentários, biografias e perfis traçados nos dias a seguir à morte acaba por ser, é verdade, o corolário do esquecimento a que o realizador Newman foi votado no seu tempo – quanto muito, e apesar dos prémios que alguns deles receberam, esses filmes foram olhados com deferência, aquilo que não disfarça a incapacidade de sentir paixão.

Foi breve – seis filmes –, ficou algo por cumprir, nunca saberemos da frustração do realizador, que nas suas entrevistas foi tão discreto quanto os seus filmes.

É por isso que a homenagem que lhe presta o Estoril Film Festival, que decorre de 14 a 22 [ver páginas do suplemento P2], é a oportunidade de fazer justiça histórica: (re)descobre-se um universo lírico, frágil, com uma disponibilidade imensa e intensa para as personagens que é de pôr ao lado dos grandes do cinema americano.

Para entrar a matar, diga-se que uma das excepções ao esquecimento da obra de Newman-cineasta foi um texto do crítico espanhol Miguel Marías (www.movingimagesource.us).

Chamou-lhe "The Intimate Gaze", e ali defende (não demonstra; declara os seus sentimentos) que Newman como realizador é uma "espécie de elo inconsciente perdido" entre a geração "ferida" do classicismo americano, gente como Nicholas Ray, Kazan, Richard Brooks, Mankiewicz, Preminger, Minnelli ou Robert Rossen, e as experiências mais modernas e abstractas de quem veio depois, como Cassavetes, Abel Ferrara ou Charles Burnett.

A referência a Brooks, para quem Newman interpretou os seus papéis mais icónicos dos anos 1950/1960, "Gata em Telhado de Zinco Quente" e "Corações na Penumbra", é bem lembrada; é aí, numa espécie de toque, gesto impressionista, que o cinema de Paul Newman se filia.

Foto

Uma questão íntima

É, todo ele, o cinema de Newman, uma questão íntima. Por isso "The Intimate Gaze" é um título bonito e apropriado.

Antes do mais: começou a realizar para tentar sossegar uma insatisfação.

Tinha 42 anos em 1968, estava a atingir o zénite da sua fama de actor (tinha filmado "Cool Hand Luke", dois anos depois chegaria o sucesso apoteótico de "Dois Homens e um Destino"), e sentia que quanto mais fazia, mais se repetia.

"Cada vez que me vejo no ecrã hoje penso: 'Ali está Hud [de 'Hud, o Mais Selvagem entre Mil'], e ali está um pouco de Harper [de 'Harper']. Não sou inesgotável como um Laurence Olivier. Não possuo esse género de talento."

O crítico David Thompson encontrou, aliás, na carreira de Newman-actor uma "arrogância" inicial que, com o tempo, se transformou em "perplexidade", como se dessa forma ele quisesse assustar os que se prostravam em adoração à sua beleza e ao seu talento tomando-os a sério – afinal, este foi o homem que comprou espaço publicitário na revista "Variety" para pedir desculpa todos os dias aos espectadores que vissem naquela semana televisiva "The Silver Chalice", o seu primeiro filme como actor, que ele considerava péssimo.

Isto para dizer que "Rachel, Rachel", a estreia na realização, nasceu dessa necessidade de trabalhar uma outra imagem de si próprio – para si próprio. Stewart Stern, o argumentista que o acompanhou nesse filme, disse: "Paul é daqueles que pensa qualquer tarefa como um duelo ao meio dia sob um sol escaldante.

Realizar filmes era uma tarefa desse calibre. Não haveria sombra sob a qual se proteger." E disse o próprio Newman: "Sempre quis ser realizador porque sempre gostei daquilo que ultrapassa a simples interpretação: os ensaios, as pesquisas no terreno, a exploração de uma personagem, todo o lado intelectual da coisa. Gosto mais disso do que subir a um palco ou mostrar-me frente à câmara.

Que para mim sempre foi mais penoso do que agradável. Suponho que não sou muito exibicionista."

A outra razão íntima chamou-se Joanne Woodward, com quem Newman se casou em 1958. "Joanne abandonou completamente a sua carreira por mim, para ficar do meu lado, para que o nosso casamento funcionasse. Se ela fizesse teatro todas as noites [em Nova Iorque] enquanto eu estivesse na Costa Oeste [a filmar] não haveria casamento. Penso que isso me incomoda mais do que a ela, mas também a perturba. Às vezes, entro em casa e vejo esta mulher a deambular pelas salas a murmurar: 'O que é que faço para dar de comer a sete pessoas [Newman teve seis filhos, três da primeira mulher, Jackie Witte, três de Joanne Woodward], o que é que cozinho?'"

Para dar a este "primeiro violino" da interpretação a possibilidade de ser "chefe de orquestra" – olhava para a mulher assim: era a maior actriz americana -, fez "Rachel, Rachel", filme, amoroso, que mergulha no mundo interior, desejos e frustrações de uma professora de província. Lutou contra o Sindicato dos Realizadores para não pôr no genérico inicial "Realizado por Paul Newman" – não queria informação inútil a distrair a atenção do espectador em relação ao essencial: "Joanne Woodward em...".

E o filme acabado, nenhum dos dois, Paul e Joanne, tinha vontade de o exibir em público.
Joanne: "Odiámos mostrá-lo. Foi como cortar um cordão umbilical. Num momento pensámos mesmo em mandar tirar uma cópia de 16mm que só podia ser vista em nossa casa."

Para Joanne fez os outros filmes, só num deles, "Sometimes a Great Notion", é que ela não entrou (Stewart Stern: "Ele procura constantemente um décor onde o mundo pode descobrir nela aquilo que ele viu"). Mas o que recorta a individualidade do seu olhar é que nenhum dos filmes é "veículo", em nenhum deles a atenção sobre Woodward eclipsa, antes pelo contrário, a disponibilidade para criar um receptáculo, um microcosmos afectuoso que integra as personagens e as suas monstruosidades.

Como diz a miúda do cósmico "A Influência dos Raios Gama no Comportamento das Margaridas" (1972), que prepara para a escola um projecto de experiência com a mutação de flores, "Não, mãe, eu não odeio o mundo" – essa miúda é interpretada por Nell Potts, filha do casal Newman/Woodward, o que autoriza a encontrar nessa cena, nessa personagem, nesse filme o programa de um cineasta, a mundivisão de um artista.

Que – para pegar no título de um dos seus filmes iniciais que o revelou como uma espécie de herdeiro de James Dean, "Somebody Up There Likes Me" (1954) – merecia que alguém lá em cima tivesse gostado mais dele.

As citações deste texto são tiradas da biografia Paul e Joanne, de Joe Morella e Edward Z. Epstein