Lavados em lágrimas
"Não sou lento. A razão por que demoro muito a fazer os filmes é porque o sistema produtivo norte-americano não gosta de pessoas que escrevam os argumentos dos seus filmes. Quando somos nós a fazê-lo, temos de ser nós a procurar o dinheiro, os actores... Acabei o argumento de "Nós Controlamos a Noite" em 2000. Demorei três anos até fechar o "casting"... Para Kubrick era mais fácil, ele tinha um estúdio, a Warner Bros,, atrás dele". Duas ou três coisas, então, que se deve saber sobre James Gray, realizador, argumentista. É visto como um dos mais solitários cineastas americanos ("Sim, sinto-me completamente sozinho").
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"Não sou lento. A razão por que demoro muito a fazer os filmes é porque o sistema produtivo norte-americano não gosta de pessoas que escrevam os argumentos dos seus filmes. Quando somos nós a fazê-lo, temos de ser nós a procurar o dinheiro, os actores... Acabei o argumento de "Nós Controlamos a Noite" em 2000. Demorei três anos até fechar o "casting"... Para Kubrick era mais fácil, ele tinha um estúdio, a Warner Bros,, atrás dele". Duas ou três coisas, então, que se deve saber sobre James Gray, realizador, argumentista. É visto como um dos mais solitários cineastas americanos ("Sim, sinto-me completamente sozinho").
Mentiríamos se disséssemos que, quando aparecem, os seus filmes geram unanimidade - causam mesmo urticária a alguns, e quanto ao último, a plateia do Festival de Cannes, por exemplo, dividiu-se entre aplausos e apupos. (Suspeitamos que também é por tanto fazer esperar os espectadores que Gray cria uma tal solenidade que o faz ser brindado desta forma...). "Sim, divido opiniões, mas acho que quando toda a gente gosta de um filme, então é porque esse filme não é bom. Mesmo Kubrick... "Barry Lyndon" foi arrasado, "2001..." foi considerado pela crítica Pauline Kael um filme de ficção-científica pouco imaginativo, e só disseram bem de Kubrick com "De Olhos Bem Fechados", quando ele já estava morto."
Outra coisa que se deve saber sobre James Gray, além do facto de ter Kubrick em tanta estima, e além do facto de ser um daqueles americanos que crê, sem sentido de humor, na Arte, é que tem 39 anos e o cinema que lhe interessa foi feito há mais de 30 - pelo menos, pelo menos... Desde então, segundo ele, nada aconteceu. "Sim, para mim o cinema como forma artística está em declínio. O cinema americano, por exemplo, como arte narrativa, acabou nos anos 1970. Mas acredito firmemente na narrativa e na narrativa com ressonâncias históricas e políticas, com consciência social e de género sexual. Portanto, ou estou errado ou está a História errada. E acho que estou certo."
Não há que enganar: quando fala em "cinema asiático", por exemplo, James Gray está a falar de Kurosawa, Ozu, Mizoguchi, não está a falar de Takeshi Kitano, Tsai Ming-liang ou Apichatpong Weerasethakul. E se, ao verem "Nós Controlamos a Noite", se perguntarem como é que alguém se atreve ainda a cumprir aquele classicismo - aquela perfeição de formas sob as quais vive a contradição das personagens, como num filme de... Elia Kazan ("Oh, sim, gosto muito de Kazan") -, a conclusão pode ser esta: este cineasta é um reaccionário. "Sim, sou um conservador em termos estéticos. Politicamente não o sou. Gosto da perfeição das formas, como uma superfície em que há contradições por baixo. Se alguém me chamar reaccionário, então deve também chamar reaccionário a Edward Hopper, e isto sem me querer comparar com ele. [O cineasta] Jean-Pierre Melville dizia que é preciso mais coragem para fazer um filme clássico do que um filme moderno. Contar uma história elegante com uma mensagem complexa é qualquer coisa de brutal. Não é o que está na moda. E parece haver uma recusa do sentimento, do melodrama. A única coisa que se faz quando se faz uma obra de arte é criar uma distância irónica. Nunca se corre o risco da emoção. Olhamos para esses filmes como obras de arte numa parede". É altura, por causa da emoção, de falar da fotografia.
Em 2000, James Gray viu uma foto no jornal "New York Times" de um grupo de polícias em lágrimas. "Nunca se vê a polícia assim, de forma emocional. As vidas dos polícias, bons ou maus, têm um lado emotivo. Porque os pés deles são de barro. Perguntei-me: "Se Luchino Visconti fizesse um filme de polícias, como seria?"" - é uma pergunta a que Gray, dadas as suas afinidades cinematográficas, não conseguiu resistir a fazer.
Por essa altura viu também "Medida por Medida", de Shakespeare, leu "Henrique IV", e pensou num "melodrama shakespeareano que envolvesse a polícia; um melodrama em que houvesse uma personagem sobre o qual as outras dissessem "é uma pessoa boa" mas que o espectador percebesse que era, afinal, uma pessoa comprometida, alguém que para se tornar uma pessoa boa se tivesse tornado "menos pessoa"".
Esta é uma forma de resumir "Nós Controlamos a Noite", a história de dois irmãos - Joaquin Phoenix e Mark Whalberg - de lados opostos da lei. Joaquin tem um "nightclub" (é Nova Iorque, anos 1980) que serve de antro à Máfia russa; Whalberg é polícia, como o pai (Robert Duvall). A personagem de Phoenix é a tal que Gray acabou de descrever como alguém que, para se tornar uma pessoa boa, se tornou "menos pessoa". É que o arco que ela descreve no filme leva-a da proximidade ao "underworld" à assunção do legado familiar, com a integração nas forças policiais. A submissão à lei do pai. "Um filme pró-polícia", gritaram logo alguns críticos do filme e Gray diz que isso é um disparate. "Não é um filme pró-polícia, a personagem que acaba no fim não é a mesma que conhecemos no princípio, é uma versão diminuída de si própria." E logo a seguir acrescenta que a leitura de filme "pró-polícia" recusa as ambiguidades, recusa a complexidade. A ser assim, compara, então ""Apocalypse Now" [Francis Coppola], pelo facto de utilizar música de Wagner, teria de ser considerado um filme fascista, o que não é, é um filme que adoro, é uma denúncia da guerra".
Mitologia familiarEm "Nós Controlamos a Noite" há ambiguidades à descrição, diz Gray, fã de contradições e de dialécticas. (Vivem nele, que é hoje mais "movie brat" do que os próprios "movie brats", os Coppola, Friedkin ou Scorsese dos anos 1970, e que parece filmar hoje para continuar a repetir, incessantemente, "O Padrinho"). Podemos começar pelo título do filme: tem tanto de eufórico (o mundo da noite de Phoenix) como de descritivo em relação ao exercício do poder (o mundo puritano do pai e do irmão).
Podemos continuar pela forma como as famílias, desde "Viver e Morrer em Little Odessa", aparecem no seu cinema: como sítio onde se regressa mas, afinal, como sítio a que nunca podemos regressar, porque para isso temos que deixar de ser nós próprios. Há nisto, perguntamos, exorcismo pessoal? "Sim, a minha família é complicada. Há coisas positivas e coisas negativas - é isso que faz a boa Arte: a complexidade. Há amor e ressentimento. Aquilo que somos tem a ver com os nossos pais. As relações familiares têm algo de mitológico. É isso que está nos meus filmes: o amor como potencial destrutivo. Os gregos já sabiam isso, não é novidade nenhuma. Mas não me interessa a novidade, nem a originalidade. Ler "Édipo Rei" não tem de ser uma experiência "fresca". É o oposto. E o facto de as coisas serem sempre a reescrição do mesmo é que enche a experiência de ressonâncias. A Arte é isso: não ser novo, não ser fresco".
Continuando ainda pela família: a obsessão pelos imigrantes do Leste europeu vem, nos filmes de Gray, do "background" deste filho de ucranianos que chegaram aos EUA em 1924, assentando em Brooklyn. "O carácter do Leste europeu, russo, para generalizar, está nos meus filmes: numa certa repressão de sentimentos. Os russos são emotivos, mas, ao contrário dos italianos, é preciso conhecê-los primeiro".
Tudo isto, que se acabou de ler, está expresso num corpo, Joaquin Phoenix. Com ele Gray vai a caminho da terceira colaboração (depois de "Nas Teias da Corrupção" e de "Nós Controlamos a Noite", acabaram de fazer mais um filme - ver texto nestas páginas). É um corpo que concretiza o programa do cinema de Gray. É um modelo, Joaquin. Dos - enumeração de Gray - Alain Delon, Robert de Niro, Pacino, Montgomery Clift... "É muito inteligente. Emocionalmente inteligente. Consegue projectar as suas guerras íntimas. O mais famoso monólogo da cultura ocidental, "Ser ou não ser", mostra uma crise existencial. O que me interessa num filme é a forma como se trabalha essa crise interior. Como se projecta isso. Não é fácil. A cara é ambivalente, não é a de um herói."