Lisboa, a desaparecida
Isto passa-se em Lisboa, cidade que aqui também é a desaparecida...
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Isto passa-se em Lisboa, cidade que aqui também é a desaparecida...
Lisboa deixa de ter a dimensão de cenário familiar e reconhecível que acolhe ou cria personagens. Isto é uma primeira vez no cinema português. Fazendo uma pequena digressão, pensemos em universos tão diferentes no "caso" português, que até se negam e se contradizem - João César Monteiro, Fernando Lopes, Joaquim Leitão, "novos" como João Pedro Rodrigues, Pedro Costa, Cláudia Tomaz, Miguel Gomes (podíamos ainda referir o exemplo de cineastas estrangeiros que olharam para a cidade, como Wim Wenders ou Alain Tanner)... Vemos que neles, e apesar de todas as reformulações ou reinvenções figurativas e obsessivas de cada um dos autores, a cidade permanece (ainda) um espaço com a dimensão humana, um bairro (quando o cinema português quis fazer "saga urbana à americana", muitas vezes "thriller" ou policial, o resultado, e não só por falta de meios, se aproximou da paródia, algo, essa espécie de pequenez endémica do que é familiar, que um cineasta como Joaquim Leitão captou com alguma auto-ironia, em "Duma vez por Todas", já nos distantes anos 80).
Em "Alice" há, então, uma primeira vez. Diremos que há aqui uma perda, e essa perda é a do que é único e particular, é a perda de uma dimensão de sagrado que existe numa ordem, a de uma personagem e do mundo que a rodeia (o pai e a mãe do filme de Marco Martins, pelo contrário, não têm cenário a que pertençam, foram expulsos). Alarguemos essa dessacralização: "Alice" é uma longa-metragem portuguesa que nos chega de um mundo em que o tráfico e a produção anónima de imagens é um dado natural (sem especiais fétichismos por isso...), é a normalidade. Isto não se diz para ser um valor em si, isto diz-se para se dizer da realidade; e isto não tem nada a ver com a oposição "publicidade vs. cinema" - dilema demasiado fácil de chamar para aqui só porque publicidade tem sido a experiência formativa do realizador -, porque não há nada de "publicitário" em "Alice", embora seja verdade que essa experiência expôs Marco Martins à proliferação de uma forma mais inevitável do que a de outros "jovens" cineastas portugueses, deu-lhe uma outra natureza. Que faz com que "Alice" se passe em Lisboa, mas se pudesse passar em outra cidade do mundo, em Milão ou em Nova Iorque.
Deixando os pioneirismos, porque não se trata aqui de competição olímpica, voltemos ao peso surdo dos corpos de um pai e de uma mãe - dele, sobretudo, que constrói uma realidade paralela para fazer face à perda. "Alice" não tem propriamente uma história, nem várias histórias, mas um rumor, e esse rumor é permanente (esse peso dos corpos, parece que se ouve...). É um filme de uma obsessão, e de uma só. Esse minimalismo, que tem a sua expressão mais profunda na presença de Nuno Lopes, é quase um "partis pris" tenaz. Repare-se como algo muda e se abre (na iluminação, no registo interpretativo...) quando vemos este pai na sua profissão de actor, em cenas de palco: como que a mostrar que é no "faz de conta" que a existência parece emitir sinais vitais, mas quando isso é só "faz de conta"...
Dizemos que este rumor monocórdico é "quase" um "partis pris" tenaz porque a espaços o filme abandona a solidão das personagens como se receasse pela solidão do espectador; a espaços fabrica intervalos de réplica (figuras secundárias que se cruzam com a personagem de Nuno Lopes) como se precisasse de introduzir variações porque receasse que uma voz só fosse demasiado peso - contradição: o princípio da rábula, e do "típico" em algo que seduz pela não necessidade de tomar forma definitiva.