Espelho meu

Já era uma coisa tagarela, "talking heads" no meio da Europa, mas a comédia romântica era ainda o formato. Até porque, e em favor do reconhecimento, o realizador Richard Linklater não se esquecia de, esporadicamente, colocar o par que acabava de sair da adolescência, e que por isso ainda falava tanto nos pais e na infância, em diálogo, também, com o cenário e com outras personagens, desde uma dupla de actores a uma cigana, passando por uma versão vienense de um sem abrigo (versão cultura, claro).

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Já era uma coisa tagarela, "talking heads" no meio da Europa, mas a comédia romântica era ainda o formato. Até porque, e em favor do reconhecimento, o realizador Richard Linklater não se esquecia de, esporadicamente, colocar o par que acabava de sair da adolescência, e que por isso ainda falava tanto nos pais e na infância, em diálogo, também, com o cenário e com outras personagens, desde uma dupla de actores a uma cigana, passando por uma versão vienense de um sem abrigo (versão cultura, claro).

Tudo isso e o que essas figuras diziam, e ainda uma roda gigante, faziam o papel de vinhetas e projecções românticas, a insustentável leveza de um "kitsch"- mas não é essa a vista de um comboio quando se sai da adolescência? - que o filme não abraçava totalmente mas do qual também não se livrava.

Eles agora têm Paris, nove anos depois. Céline (e Julie Delpy) já não é tão viçosa como um anjo de Botticelli, mas ela e Jesse (e Ethan Hawke) são reconhecíveis nas rugas, nos contornos que endureceram (a verdade é que Céline poderia continuar a citar Bataille, e Jesse poderia continuar a dizer, como quem não quer ser levado a sério, "Eu, só preciso de amor" e logo a seguir deixar cair uma citação de Dylan Thomas). Mas agora o filme é outro e repare-se como começa "Antes do Anoitecer": planos de Paris, os espaços que Céline e Jesse ainda hão-de percorrer, exactamente como a imagem invertida do filme anterior, como um espelho. De uma vez só Linklater assume e anula o "cliché" da "cidade do amor", faz a piscadela de olho (com auto-ironia) à sua fixação "nouvelle vague" - Rohmer e Rivette -, arruma a vinheta, e instala um tempo específico: aqui e agora (ou a ilusão de...)

Eles têm hora e meia em Viena e hora e meia de filme. É coisa virada para um presente: Céline e Jesse dembulando por Paris (Céline e Jesse também "vont en bateau" como "Céline et Julie..." no filme de Jacques Rivette), mas propositadamente pouco de Paris, só eles e nós, sem interferência de personagens e episódios a vulso para fazer comédia romântica (nem na sua versão mais madura); apenas eles a olharem para o espelho e assim obrigando o espectador a olhar(-se).

"Antes do Anoitecer" é, como se diz, uma "sequela". Isso é coisa que acontece a seguir aos filmes que são "blockbusters", e isso "Antes do Amanhecer" nunca o foi. Fará parte da memória mais querida de quem nos anos 90 andava, ou acabava de andar, de Interail, apareceu na altura de "hype" do cinema "indie" norte-americano, ficou como momento de sortilégio, mas sucesso de bilheteira nunca o foi (por isso, "Antes do Anoitecer" deve ser a "sequela" do filme que menos dinheiro fez).

É uma "continuação" insólita: Linklater, Delpy e Hawke tomaram conta, e ganharam consciências, das suas personagens (o filme foi escrito pelos três), envolveram nelas as vidas, e o resultado é menos uma "continuação" de uma ficção que ficou para trás, e mais o acerto de contas a que a realidade ("Antes do Anoitecer") obriga a fantasia: "Antes do Amanhecer"... e a rodagem desse filme, e essa época, quando pela primeira vez Ethan foi Jesse e Julie foi Céline. Eles falam para nós.

Em vez da "love story", abre-se um espaço de encantamento e confronto - é o que acontece quando se olha para o espelho - a caminho de uma lucidez. A concentração temporal põe em circulação um turbilhão de energias e sentimentos contraditórios, que vai da ternura ao embaraço, da nostalgia ao ressentimento, e a forma como se passa de uma coisa a outra - como na sequência dentro do táxi, mais para o final - é tão imprevisível como a mudança de direcção do vento. No rasto que isso deixa estão os sinais de uma clarividência bem melancólica.

No filme anterior, Jesse, tentando convencer Céline a passar com ele um dia em Viena, propunha-lhe que ela encarasse aquele presente como uma viagem no tempo. Dizia-lhe mais ou menos isto: "Imagina que és casada, que tens filhos, estás farta do teu casamento e pensas nos tipos que conheceste e no que poderia ter acontecido se... imagina que eu sou um desses tipos. Isso é um favor que fazes ao teu marido: afinal, eu não sou nada de especial, ele é que é o escolhido, fizeste bem em ter ficado com ele". Confirma-se: "Antes do Anoitecer" projecta "Antes do Amanhecer" para a dimensão de filme-fantasma. O que Jesse e Céline terão para sempre é Paris, e hora e meia - e não Viena e 14 horas. É tempo suficiente para o espectador ser assaltado pelos seus fantasmas. Espelho meu...