O caçador de imagens

O que é que pensou George W. Bush quando lhe segredaram que a segunda Torre Gémea tinha sido atingida em Nova Iorque? As mãos continuaram a agarrar "O Meu Cordeirinho", mas já sem convicção, os olhos refugiaram-se no vazio e George W. Bush pensou... o que a voz "off" do realizador, Michael Moore, nos diz que ele pensou.

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O que é que pensou George W. Bush quando lhe segredaram que a segunda Torre Gémea tinha sido atingida em Nova Iorque? As mãos continuaram a agarrar "O Meu Cordeirinho", mas já sem convicção, os olhos refugiaram-se no vazio e George W. Bush pensou... o que a voz "off" do realizador, Michael Moore, nos diz que ele pensou.

E pronto, George W. Bush foi "apanhado". E é assim, em "Fahrenheit 9/11", que o espectador do filme se descobre prisioneiro de um programa de "Apanhados" (o que significa que Michael Moore consegue aprisionar muito mais gente do que George W. Bush - "aquele Bush que não foi eleito", como Moore diz).

É uma descoberta forçada a do espectador, e a consciência fica razoavelmente angustiada, porque não há nada em "Fahrenheit 9/11" que tenha a ver com escolha ou com a possibilidade de um contra-campo. A lógica é determinista: tal como num programa de "Apanhados" em que sabemos que o desastre, o infortúnio ou o logro vão bater à porta de um qualquer infeliz e só resta esperar pelo momento da gargalhada, também aqui não se escapa à claustrofobia do "show". A via das imagens é de sentido único - ou então quando elas não são suficientemente eloquentes a falar, uma voz "off" indica o caminho.

Não se trata de descobrir o que é verdadeiro e o que é falso - ou qualquer coisa, algures, no meio. Não é de jornalismo ou de trabalho de investigação (no sentido de percurso) que se trata, mas, assumidamente, de "tempo de antena" - "Fahrenheit 9/11" nem faz questão de mascarar a rigor de documentário - com um propósito firme: contribuir para retirar George W. Bush da Casa Branca. O gesto é tão determinado que o júri de um festival de cinema como o de Cannes desistiu de procurar, para o seu palmarés de 2004, obras-primas cinematográficas - essa coisa nobre, mas afinal vã quando valores mais altos se agigantam - e preferiu ir atrás dessa urgência, dando a "Fahrenheit 9/11" a Palma de Ouro. O que quer que se pense do filme, esse gesto do júri, por seu lado, revelou uma determinação, igualmente assinalável, de querer estar em sintonia e a vibrar com o momento (e, já agora: o mesmo propósito de querer Bush fora da Casa Branca). Não deixa de ser, por isso, legítimo pensar que qualquer que seja o resultado das eleições presidenciais de Novembro nos EUA "Fahrenheit 9/11" corre o risco de, a seguir, se auto-destruir - porque se tornou inútil?

Oscila, assim, entre a vibração mais feroz e a irrelevância; entre o "show" de variedades, televisivo, e o ensaio político. E Michael Moore tem nele tanto a postura de "clown" proletário como de inquietante Big Brother.

o chato.

Apareceu nas imagens, diz ele, por acaso. O "chato" obeso de boné e camisa aos quadrados entrou no enquadramento em 1989, em "Roger and Me", como expediente para fazer sentir aos espectadores - aqueles a quem ele dirige os seus filmes: o público da América profunda e dos multiplexes - que havia ali no ecrã um Zé Ninguém como eles, em luta contra a "Corporate America". É claro que entrou no enquadramento também para sossegar os entrevistados, explicou, que assim não se viam sozinhos com a câmara; mas fê-lo sobretudo para permitir um efeito de catarse, de reconhecimento, aos espectadores.

É curioso rever hoje "Roger and Me": estava já lá tudo o que é Moore hoje, mas estava também um percurso emocional de aprendizagem de um homem que percorria a sua cidade natal, Flint, Michigan, que se tornou cenário pós-apocalíptico quando 30 mil dos seus habitantes foram abandonados ao desemprego e à penúria devido ao encerramento das fábricas da General Motors (GM). O Roger do título era Roger Smith, presidente da GM, que Moore queria entrevistar para o confrontar e que nunca conseguiu "apanhar", mas esse encontro passava para segundo plano (esquecemo-nos dele, na verdade...) para se destacar a viagem de uma memória pessoal em sobressalto, de utopias operárias desfeitas, de sonhos cinematográficos que Hollywood inventou - Moore já aqui manipulava materiais diversos da cornucópia pop, da TV ao cinema. Era um misto de obra de militância social de um paladino dos pobres e diário íntimo, e é o mais puro que o cinema de Moore conseguiu ser; é essa pureza que o põe na proximidade do "documentário".

O Moore que vimos em "Bowling for Columbine" (2003), apesar do brilhantismo da manipulação do "show", já não era o Moore que (nas suas palavras) entrou em campo para "sossegar" os entrevistados, era o Moore de que toda a gente fugia, que entrava em campo para cercar os seus "apanhados" (que o diga Charlton Heston, presidente da National Rifle Association...) com métodos ambíguos que até têm o efeito perverso de transformar o ser mais vil em vítima desamparada.

Agora repare-se na evolução: pouco vemos Michael Moore em "Fahrenheit 9/11". O método regrediu? Não, até se exponenciou: Moore não é um intermediário, já que essa postura suporia realidades, mundos e argumentos diferentes, ou a proposta de uma viagem; não, Moore agora está em todo o lado, invisível mas omnipresente, como lógica dominante, como única realidade, a de uma "assemblage" de imagens da televisão, como um "zapping" pirata, ou encomendadas a "freelancers" (as imagens das tropas americanas no terreno, no Iraque).

Não há outra realidade para além destas imagens e do seu propósito - excepção, talvez, ao segmento em que Moore se desloca a Flint, mas talvez por ser um regresso haja alguma ressonância vital.

Não há personagens que se encontram; há personagens que se fabricam. A mulher que se define, no início, como militarista e "democrata conservadora", e que no fim, depois de saber que o filho morreu no Iraque, faz a sua tomada de consciência, serve o propósito de um drama com a espessura de um "reality show". Compare-se, por exemplo, com a humanidade descarnada, frágil e cruel (porque a crueldade é uma técnica de sobrevivência), de uma esfoladora de coelhos na Flint de "Roger and Me".

Michael Moore não importou as técnicas do espectáculo televisivo. Michael Moore transformou-se na caixa da televisão. A Palma de Ouro de Cannes vibra com o seu tempo.