Retrato de Senhora com sangue e orgasmo em fundo
(A cena era mais ampla, havia um homem sentado e uma mulher a fazer sexo oral, mas Frannie fez o seu "insert" pessoal e olhou para aquilo que lhe interessava). A partir daqui...
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(A cena era mais ampla, havia um homem sentado e uma mulher a fazer sexo oral, mas Frannie fez o seu "insert" pessoal e olhou para aquilo que lhe interessava). A partir daqui...
Há um "serial killer" à solta em Nova Iorque. E a silhueta feminina que Frannie apenas entreviu na cave acabou por ser uma das vítimas. Haverá outra, Pauline, nem mais nem menos do que a irmã de Frannie.
Sabe-se dos métodos do assassino, presumivelmente o vulto do bar, sabe-se que ele se anuncia como ideal romântico, cavaleiro andante, oferecendo um anel de noivado antes de começar a decepar corpos. Não é com isto que todas as mulheres sonham - com o anel de noivado?
A partir daqui, então...Frannie fica obcecada com aquele pénis e com aquela tatuagem. E é quando conhece Malloy, detective privado, daqueles homens que já viram tanto que começa a descer sobre eles uma certa tristeza (mas ainda é capaz de propor a Frannie: "O que é que quer que lhe faça? Quer que lhe faça a corte, que a leve a restaurantes chiques? Ou quer que lhe lamba a cona?"), que as luzes se acendem definitivamente. Malloy tem no braço a mesma tatuagem que Frannie viu no pénis do homem no bar. É com isso que ela sonha, cair nos braços de um "serial killer"?
O que é que a reprimida Frannie vê quando as luzes se acendem à sua volta? Fantasmas. Afinal sempre estiveram ali, ela é que preferia a escuridão. Quando ela vê - sangue, corpos decepados; e os despojos de uma história familiar de abandono e desamor, a sua - sente medo. E é esse o prazer desta senhora.
fábula s&m. A Frannie de "In The Cut - Atracção Perigosa" é exemplar da família de outras heroínas dos filmes de Jane Campion, de "Sweetie" a "Retrato de uma Senhora", passando por "Um Anjo à Minha Mesa" e "O Piano". São mulheres presas a uma ideia de romantismo, a uma convenção que se transformou no algoz das suas vidas. Como a própria realizadora sintetizou, numa entrevista: "Na nossa cultura, as ideias masculinas dominam de tal forma a nossa psique que tendemos a ver-nos através de um ponto de vista masculino. É inerente aos mitos de romance e amor em que vivemos - se não há um homem a amar-nos ou se não temos uma relação é como se não estivéssemos vivas." Só para lembrar: Holly Hunter, em "O Piano", acaba por amputar o dedo, e o guarda-roupa de Nicole Kidman, em "Retrato de uma Senhora", parece o instrumento que a tortura. O masoquismo é prosseguido em "In the Cut" por Frannie (Meg Ryan), que tem sonhos com pétalas de flor a cair dos céus e com o idílio amoroso dos pais numa pista de patinagem no gelo - na realidade, esse amor correu muito mal, e por isso não tardará muito a que Frannie, no auge das suas ânsias, se intoxique com a beleza de um sonho genuinamente gótico: um par de patins, do homem, a deceparem as pernas da mulher.
E o "serial killer"? A verdade é que o "thriller" é aqui coisa previsível - para o espectador. Mas isso não serve para acusar "In The Cut". A previsibilidade é mesmo o que inquieta a obra. Podemos arriscar: há uma espécie de volúpia, que marca o nosso olhar sobre as personagens, nessa predestinação, nesse saber como tudo se desenrola e/ou acaba. Sim, tudo já "ali estava", à volta de Frannie, foi só questão de ela acender a luz. O espectador acompanha esse processo, de dor e prazer, como se lesse o desenrolar de um destino - não é a própria Frannie que vai lendo o seu nas carruagens do metro que transportam poesia em movimento?
Não é num "thriller", então, apesar de simular as suas formas; tem a inevitabilidade da fábula. É menos "quem matou" do que "Alice no País das Maravilhas"... ao som de "Que sera sera", como os 50's de Doris Day.
Tudo já "ali estava" como nos sonhos, como na previsível estranheza dos sonhos. É notável a forma como Nova Iorque se presta como cenário: presença sufocante, sexuada de forma quase totalitária - possuída pelo frenesim - e que mais do que permitir ser olhada, fixada, olha e fixa as personagens (e o espectador).
Jane Campion deu como referências o cinema americano dos anos 70 (mais uma enfeitiçada por essa época): para a heroína, "Klute", de Alan J. Pakula (uma composição para a eternidade de Jane Fonda), ou "Looking for Mr. Goodbar", de Richard Brooks (em que Diane Keaton caminha para as mãos de um "serial killer"); para a cidade suja e crua, "Os Incorruptíveis Contra a Droga", de William Friedkin, ou o incontornável "Taxi Driver", de Scorsese. Ou seja, tudo já "ali estava", também, por causa dos filmes - até a escolha de Jennifer Jason Leigh, eterna vítima no cinema, para fazer de irmã de Meg Ryan.
É também do cinema que vem Meg Ryan, das comédias românticas que têm Nova Iorque como cenário. Visualmente um misto de Kidman (que esteve para interpretar a personagem) e Fonda (em "Klute"), tem aqui um momento de "tour de force" (não se sabe o que poderá recolher disso; "In the Cut" tem sido pouco visto). Não só porque se despe; mas porque (é uma liberdade de espectador de a olhar assim) caminha pela personagem como uma sonâmbula, como se optasse pelo lado dos fantasmas, o outro lado das sorridentes presenças que habitualmente tem nos filmes (até se podem comparar os orgasmos: o de "When Harry Met Sally" e o de "In the Cut").
No final do filme, que não é exactamente o final do livro de Susanna Moore que Campion adaptou (aí é mais ou menos assim: Frannie a dizer, em delírio sacrificial, "A minha cara - a minha garganta. O meu peito - as minhas mãos. Os meus braços!" e pode-se imaginar o que o "serial killer" lhe faz), a masoquista chega a casa, no fim do seu calvário de dor e prazer, encontra o seu homem e, momento de superação para ela, vê-se transformada em dominatrix. Cumpriu os passos da cartilha S&M. É o retrato de um amor?