João César Monteiro passou a morar nos filmes
Manipulador de luz e sombras, jogador existencial. Dandy delicado, poeta. Quem se cruzou com ele, na vida e no cinema, quem viveu com ele uma relação a dois, na vida ou no ‘plateau’, recorda-o. E traz dentro de si o eco da voz do hipnotizador: João César Monteiro. Estreia-se hoje Vai e Vem, o último filme de um caçador de pérolas.
Este texto foi publicado no caderno Y de dia 20 de Junho de 2003.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Este texto foi publicado no caderno Y de dia 20 de Junho de 2003.
O encontro mais do que ao acaso deve-se a um atraso, a um dia em que Rita Pereira Marques ficou à espera do autocarro, o número 100, o mesmo que sobe e desce em Vai e Vem. João César Monteiro passou por ela, Rita, que nunca tinha feito cinema nem imaginado que isso podia acontecer (e depois de lhe ter acontecido, mantém que não lhe aconteceu cinema em Vai e Vem mas outra coisa). Uma voz, naquele dia na paragem do autocarro, em Lisboa, fez-se ouvir, e o diálogo jogou-se assim:
— Não quer ser a Adriana?
— Presumo que a Adriana seja uma personagem, mas eu não sou actriz [é psicóloga e pintora].
— Olhe que eu também não...
O ritual começou assim, porque tudo começava, entre César Monteiro e os outros, como um teste decisivo, para ver como alguém se revelava. Era uma "estratégia existencial", assegura Margarida Gil, cineasta, durante anos companheira do realizador. E nesse tapete muitos escorregavam.
"Muita gente era engolida nessa luz que o João criava para que as pessoas se revelassem, uma luz implacável. Havia uma dimensão ética nesse jogo: ser ou não ser. Era um jogo de astúcia. E era também uma forma de ele se defender das pessoas que não eram pessoas."
Também houve um momento assim para o director de fotografia Mário Barroso, em frente à pastelaria Mexicana, em Lisboa, num dia de calor inclemente. A luz do meio-dia cá fora cegava; lá dentro, a partir do arco de entrada, mergulhava-se na escuridão. César perguntava ao director de fotografia como é que se podia filmar de fora para dentro sem iluminar, sem criar contraste, e quando exclamou "toda a gente me diz que é impossível..." — com a suavidade de uma criança que espreita um mundo de possibilidades —, Barroso sentiu o teste. "Até porque o João César estava desconfiado pelo facto de eu trabalhar com o Manoel de Oliveira — havia rivalidade, ciumeira — e pelo facto de grande parte dos meus trabalhos serem trabalhos de sobrevivência, telefilmes."
Davam-se ali os primeiros passos para A Comédia de Deus (1995) e começava uma cumplicidade (e jogos e provocações) que chegaria até Vai e Vem.
"O João nunca percebeu bem as coisas dos filtros, das objectivas. E testava-me: 'Que filtro vamos usar?' E eu respondia: 'Não sei, logo se vê', e ele gostava da resposta porque não se sentia posto em causa. Eu fazia como se não soubesse. Ele não gostava das pessoas armadas em técnicos. Tinha uma incompatibilidade com o mundo do cinema, com a arrogância, com o espectáculo. E percebi que aquilo que o João defendia de forma intransigente era o que eu intimamente defendia. No que à luz diz respeito, quando a luz é em demasia, mata a luz. Por isso A Comédia de Deus foi filmado sem luz, embora ainda houvesse uma carrinha com projectores. A partir daí, os filmes foram ficando cada vez mais despojados: como os pintores figurativos, com uma tendência para a tela branca — no caso do João, para o ecrã negro."
E com equipas cada vez mais reduzidas. "Ele tinha dificuldade em suportar as pessoas. Uma equipa de cinema é uma presença imposta. Actores, não os suportava", garante. "Tinha actores de quem era amigo. Mas gostava era das pessoas, das miúdas, quando achava que eram boas. Era uma cumplicidade humana. E tinha uma angústia desmedida em relação ao filme. Por isso, uma agressividade em relação a tudo e a todos."
Vítor Silva Tavares, o editor da & etc, onde estão publicados os livros de César Monteiro, dos "scripts" à recolha de críticas feitas para jornais (Morituri te Salutant e Uma Semana Noutra Cidade), acrescenta: "Ele odiava produções. 'Tanta gente no cinema! O que é que está a fazer tanta gente no cinema?!'. Se ele pudesse, fazia cinema com um lápis."
Actores, não os suportava?
"Ele sentia dificuldades com a representação como possibilidade de ser outro, por isso é que tinha problemas com os actores e, contraditoriamente, acabou por se recriar através de uma alteridade cândida, criando tantos outros [João de Deus, Max Monteiro, João Vuvu] que apenas reforçavam o mesmo", diz Margarida Gil. Remata: "Por isso era tão popular na rua." Essa ligação ao "povo pequeno" configura, aliás, diz Vítor Silva Tavares, "o único momento de ternura de Vai e Vem": a cena no autocarro deserto, com o rapazinho do acordeão.
Rita Durão, que é Jacinta em Vai e Vem, lembra-se de, em 1998, se dirigir para o primeiro encontro com o realizador. Preparava-se As Bodas de Deus, e a actriz percorria uma rua "cheia de reservas, a pensar nas histórias que se contavam do César e das meninas".
"Mas ele foi encantador. Decidi: não me vou deixar influenciar por essas histórias, que não são a minha história. A nossa relação foi entre duas pessoas que se foram conhecendo. E não tenho a ideia de uma dificuldade do César com os actores. Sempre me senti apoiada, devido à atmosfera que ele criava no plateau. Houve sempre espaço para o mistério. E algo acontecia." Nunca menciona a palavra, mas o que descreve revela algo próximo da hipnose (ao longo destas conversas, aliás, os interlocutores dão por si a falar com a voz de Monteiro, como se o eco dela tivesse ficado para sempre dentro deles).
"Lembro-me do primeiro dia em A Comédia de Deus: estava nervosa, não tinha experiência de cinema", continua a actriz. "De um momento para o outro fiquei disponível. Num mundo à parte. Não sei como explicar, e se se pode explicar. Acho que era ele. Acho que tudo se passou assim: ele conheceu alguém, chamou essa pessoa para junto de si e a pessoa envolvia-se com a sugestão. Era o envolvimento com um corpo, mais do que o envolvimento entre um realizador e uma actriz. Havia uma espécie de calma que permitia que algo acontecesse com um texto, com os olhares que se trocavam, toques que se completavam. Mas nunca personagens. E nunca improvisação; antes um faz-de-conta."
"Nunca fizemos ensaios", completa Rita Pereira Marques. "Para ele, o que importava era o que dentro de mim existia de Adriana. E o que é que a Adriana podia ser com aquele senhor, João Vuvu. Tudo se passava pela apropriação dos espaços e do outro. Era um dos lados geniais do César Monteiro, que quando não compreendido gerava mal-entendidos. Não é que ele não gostasse de actores; ele não gostava era de autómatos. Nunca me senti a relacionar com ele como personagem. Era estar em relação com ele, numa situação diferente. Eu tinha era de saber as palavras. Era a palavra com a vontade da pessoa que a diz. E tudo filmado à primeira. Era mais um momento de descoberta. Ou seja, tudo se passou num não-filme. Há um filme, é o produto final, infelizmente — ou felizmente, para os outros, que o podem ver."
Felizmente está no ecrã, mesmo que possa já não ser filme — a obra escorregou para fora do cinema. Em Vai e Vem, no prodigioso dueto entre Vuvu/Monteiro e Jacinta/Durão, ritual de palavras, música e canto, foi capturado esse movimento de progressão às escuras.
"Antes da rodagem, o César nunca me pediu para cantar. Era suposto ensaiarmos, mas ficávamos a ouvir música e a conversar e o tempo passava. O César dizia: 'Pronto, já ensaiámos'", recorda-se Rita Durão. "Nessa cena, a linha que separa a arte da vida não existe: são duas pessoas a fazer uma mascarada, como se estivessem em casa, numa tarde de Verão, e tudo se transforma em fábula. Não há um objectivo. É só para se fazer."
Essa cena condensa aquilo que, se quisermos, é o lado de testamento de Vai e Vem: olhar para trás, para os filmes e para os corpos que foram convocados, levantar os braços, como um desmascarar irrisório e melancólico, e exclamar que, afinal, tudo é (foi) teatro, faz-de-conta. E é visível: o toque neste filme é diferente do dos outros filmes de Monteiro, onde o espectador, cúmplice dos rituais, era colocado em prazer e em perigo perante o prazer e o perigo no ecrã — o que é que aconteceu na rodagem? Era um sobressalto "sadiano" sempre à espreita. Mas em Vai e Vem, o convite escatológico endereçado pelas palavras é sempre voluntariamente desmascarado pela delicadeza dos corpos em contacto.
"O que ele perseguia era o espectáculo do espírito e não o espectáculo do espectáculo. Aí admito que fosse incompreendido", diz Vítor Silva Tavares, amigo de há 35 anos e que surge em Vai e Vem, na cena do funeral, contando anedotas a Margarida Gil. "Como ele não os dirigia, os actores tinham de improvisar. Todo o cinema do César é feito à volta destes acasos, à procura do instante de graça."
Manuela de Freitas, actriz que atravessa a filmografia do realizador, de Fragmentos de um Filme-Esmola (1972) até Vai e Vem, fala de "uma criação em carne viva". Em 30 anos de cumplicidade, sempre que se reencontrava num plateau de JCM "percebia que ali é que era bom".
"Ia fazer os filmes do César como quem ia para o teatro, gostava tanto do cinema dele como gosto de teatro, foi o único caso em que isso aconteceu. Há a ideia de que os realizadores já têm o filme na cabeça. Ele não, até nisso era muito teatral, estava a criar enquanto filmava", descreve a actriz, que lembra um realizador cada vez mais depurado. "O essencial é que contava: um pequeno gesto, um pequeno sorriso ou uma palavra." A cena em que Monteiro/João Vuvu e Manuela de Freitas/Fausta se despedem na escadaria da Assembleia da República foi repetidamente filmada até o realizador achar que "já não se parecia com um filme".
"Ele era daqueles homens que investia nas mulheres, deixando espaço para que, num filme, tudo de feminino, de desejo, pudesse existir", diz Rita Pereira Marques. "Todo o sentido de perigo acabava por desaparecer por estarmos a viver aquilo a dois. Não era uma relação triangular; não eram dois e uma câmara. Era uma relação entre duas pessoas. Era daí que partia a criação."
Não é outra a experiência de Luís Miguel Cintra. Mesmo se esteve num filme frustrante, como Branca de Neve (2000), obra ao negro. "Foi extremamente desagradável a relação do João César com os actores nesse filme. Sentia-se um impasse, o que corrompeu tudo e todos. Ele sempre foi passional, mas nunca desatento com os actores. Dito isto, sendo ele o artista, tinha todo o direito a fazer o que fez. Vivi isso com o maior respeito. Porque sei que ele tinha respeito pelos actores. Era muito tímido, com dificuldade em comunicar. Para ele, era um problema filmar alguém. Porque era um pudico. Era um prazer e um problema. O meu primeiro plano em cinema foi um grande plano no 'Quem Espera por Sapatos de Defunto...' [1970]. Senti-me violentado, chorei, disse que não queria fazer mais cinema. Mas vendo o filme... raramente fui tão bem tratado."
O poeta Manuel Gusmão também se lembra de "ficar impressionado com Jorge Silva Melo em Silvestre [1982]" — a quem já conhecia do teatro — como se o actor, subitamente, se revelasse. "O Jorge expunha-se e usava o corpo de forma extrema, estava sobre o fio da navalha."
As aparições de um dandy
"...Sapatos de Defunto..." foi o ponto de encontro de grupos de pessoas "que se tocavam parcialmente", constelações trazidas dos vários pontos — leia-se: cafés de tertúlia — que o dandy João César Monteiro frequentava nos anos 60. Havia o Vavá dos cineastas, a leitaria e geladaria Monte Branco dos surrealistas, o Toni dos Bifes, onde se encontrava com Carlos de Oliveira, e o Monte Carlo, pólo de atracção de "gente muito heteróclita" onde, com a crise académica, "caem rapazes e raparigas" da Faculdade de Letras de Lisboa. Em todos eles, J.C.M. fazia as suas aparições. "Aparecia e desaparecia, era uma pessoa de quem não se tinha a certeza se o veríamos na próxima semana", recorda Gusmão.
É também por essa altura que Vítor Silva Tavares se cruza com o jovem César, "rapaz de poucas falas". No entanto, pressentia-se já nele uma vertigem, o lado transbordante. César Monteiro, esquizo? Gusmão lembra o seu "carácter enigmático e a intensidade que punha nas preferências artísticas e pessoais". Para quem dificilmente consegue separá-lo da personagem, a dos filmes e o "agent provocateur" fora deles, Silva Tavares adianta: "Já então, a pessoa configurava a personagem - o aspecto, a maneira aveludada de falar, os gestos desmanchados, enfim, a postura física já era insólita. Mesmo sem querer, já dava nas vistas." Manuel Gusmão confirma, imitando-lhe os gestos, "as mãos como pinças, lançando-se sobre uma presa". E, depois, "havia a componente, meio lendária, dos amores, que compunham uma aura". Como a veneração platónica de uma amada — Monteiro contemplando-a, enquanto ela devorava dezenas de pastéis de nata — ou o "amour fou" com que perseguia (é o termo) as apaixonadas, ao ponto de, sem ter dado pela saída de uma delas de um café, querer obrigar o empregado a abrir um alçapão por onde supunha que ela teria escapado.
"Alguns de nós esperávamos bastante dele", adianta Gusmão sobre o debutante. "A dúvida era se ele conseguia fazer convergir o talento e a disciplina artística. A imagem que ele criava era que passava por ali a possibilidade de golpe de génio: podia ir contra a parede, mas também podia saltar por cima." Saltou. O poeta, que fez figuração em "...Sapatos de Defunto...", ri-se, descrevendo J.C.M. como um realizador "muito escasso" — as cenas com Gusmão acabaram por ser filmadas por António-Pedro Vasconcelos, porque César se escapara para Itália...
"Nunca o encarei como cineasta", afirma Vítor Silva Tavares. "Encarei-o sempre como um poeta inteiro que lá se foi exprimindo através do cinema. É ridículo chamar ao João César realizador de cinema, porque é redutor. Dizia: 'Não percebo nada de cinema.' Mesmo que não houvesse cinema, havíamos de ler o João César nos seus 'scripts', que são poesia total."
Para voltar ao pudor a que se refere Luís Miguel Cintra: "Estranho, não?", pergunta ironicamente Silva Tavares, sabendo que "o César mal-amado", a figura pública, convidava a mal-entendidos. "Aquele que usa o meu telefone como o 112 não é, decididamente, o César da imagem pública", diz. E sublinha-lhe a "delicadeza, o rigor ético, quase singelo nas manifestações de afecto". Quando o telefone do editor tocava, "às três, quatro da manhã, podia vir a pergunta: 'Como é que se tira a tinta dos chocos?', à mistura com: 'Qual é o livro do Breton onde ele se refere à beleza compulsiva?'" Podia ser irascível, insuportável, e houve zangas. Mas uns dias depois, J.C.M. esperava-o, fumando nervosamente, à porta da "cave escura" onde o editor faz os seus livros. "Vai uma bica?", e as desavenças resolviam-se com frontalidade, coisas de cavalheiros à antiga.
"A maneira como se comportava tinha a ver com uma solidão", explica Manuela de Freitas. "O João César não confiava em ninguém. Havia da parte dele uma necessidade — que às vezes fazia com que fosse desagradável — de não se deixar apanhar. Zangámo-nos muitas vezes, porque havia aquele vai e vem do César. Ciclicamente, tinha necessidade de se zangar comigo. Quando aparecia era para falar de um novo filme."
Charada, vertigem e a busca da pérola
"A certa altura, não há dúvida de que pessoa e personagem se começaram a fundir", observa Silva Tavares. "Isso foi-se agudizando pelo cerco social e cultural que actuou nele como um torniquete."
Nesse sentido, Branca de Neve (2000) foi um momento de explosão — perante a polémica e a cegueira dos que se sentiram ludibriados por um "filme negro", César-Jekyll deu largas a Mr. Hyde. "Só encontrou ferocidade, a que ele respondeu com tripla ferocidade", diz Silva Tavares, evocando a "fera acossada" pelas câmaras de TV e pelos jornalistas à saída da antestreia do filme.
"Branca de Neve foi um momento de total negação e de total liberdade. Foi o momento de dizer: 'Eu não posso filmar e não vou filmar.' É o 'já não consigo filmar'", avança Margarida Gil. Ao primeiro dia de rodagem, testemunha Mário Barroso, via-se logo que não funcionava. "Eram cinco ou seis actores mascarados, a dizerem um poema extraordinário [de Robert Walser]. A ideia era filmar-se quadros, com os actores a repetirem um texto que tinha sido gravado, e filmar o João num banco de jardim a ouvir. Vimos as rushes e não dava. A imagem era nula. O texto desaparecia."
Por isso, ao terceiro dia, e depois de uma charada entre realizador e director de fotografia, em que cada um falava de si próprio na terceira pessoa (João César: "Já sei como fazer o filme. Não sei é se o director de fotografia aceita ter o nome dele no genérico de um filme todo negro." Mário Barroso: "Pergunta-lhe..." João César: "Também não sei se esta é uma boa ideia do realizador"), a objectiva fechou-se definitivamente. Passou a tratar-se, de seguida, de controlar no laboratório as variações de negro e cinzentos. E depois foi o escândalo. E César a alimentá-lo. "Como todos os escândalos que provocava, provocava-os porque não estava seguro de si", confidencia o director de fotografia.
Branca de Neve é, para Margarida Gil e Barroso, o afunilar de um processo de crise que se seguiu à Comédia de Deus — que foi o "ponto de viragem" na obra do realizador, "já que até aí os filmes eram relativamente clássicos", diz o director de fotografia.
"'A Comédia de Deus' foi o momento máximo de domínio, em que ele foi Deus, em que controlou de forma absoluta um sistema ético, moral, estético. Depois entrou em parafuso, começou a confundir a vida com os filmes. Deixou de haver outro. O álcool foi fundamental nesse processo", conta Margarida (Mário Barroso recorda a rodagem de A Bacia de John Wayne, em 1997: "Ele bebia tanto que a única solução era eu beber também e depois irmos para casa").
Dessa vez não se passou o que se passava habitualmente no processo criativo de Monteiro, ou seja, arrancar à escuridão a luz dos filmes, encontrá-lo no caos.
"Todos os filmes tiveram sempre um embrião, um esboço falhado, como uma placenta que depois se desfazia", recorda Margarida. "O João avançava pela palavra escrita. Os filmes eram completamente escritos, mas depois havia um momento em que o João caía no precipício do cinema — o encontro com a luz e com os corpos. Era um momento de caos, parecia um sonâmbulo a apalpar a pérola lá dentro." Nessa fase, César podia sonhar com gruas e figurantes, mas sabia que o sonho ia acabar (Barroso tem a intuição de que havia uma nostalgia de "não fazer o filme clássico de Hollywood, porque falava muito nos movimentos de grua e nos filmes do Orson Welles").
"Era desse caos que nascia o filme. Era uma procura, às apalpadelas", continua Margarida. E com uma pulsão auto-destruidora. "O produtor era a primeira vítima plausível dessa estratégia. Isso metia medo. A toda a gente. O produtor Paulo Branco conseguia lidar com isso, não tinha medo, por isso o João gostava tanto dele. Mas era daí que nascia o filme. O João precisava de tempo para que as coisas se revelassem. Nesse sentido, era profundamente religioso."
Com Branca de Neve, o filme que não nasceu, agudizou-se, segundo Margarida, o processo de diluição nos filmes, "uma espécie de vertigem, de volúpia, à volta de si próprio, de ser devorado por si próprio porque não existe outro que lhe dê luta. É uma coisa terrível para um cineasta: filmar o quê?".
"Ele passou a morar no cinema. Desapareceu nos filmes", diz.
A lucidez da morte
E Vai e Vem é o quê? "É um inventário de toda a obra, um olhar para trás, uma concentração de memória. É a necessidade de pôr as coisas no lugar, uma espécie de ponto de situação, desprendidamente — é isso que é terrível. É o único filme possível após Branca de Neve, que foi o filme de alguém que estava na imobilidade total, um filme trágico contra a vontade de vida do João", resume Margarida Gil.
O guião surge no rescaldo de Branca de Neve. Silva Tavares, de novo: "Como sair daquele buraco negro? Teríamos um João César domesticado por tanta gritaria e pancadaria públicas? Não. Ele vai meter no seu 'script' toda a carga de TNT, em registo de farsa." O editor fala de um filme tocado "pela lucidez implacável da morte", e haverá a tentação de ver nele a consciência do fim. No entanto, o "script" estava terminado antes do diagnóstico da doença. "O César sabia antes de saber. A consciência do fim é premonitória", garante, acrescentando que "Vai-e-Vem" "filmou-se a uma velocidade inusitada".
Mas sempre à procura do tempo. Como na comida, revela Ana Isabel Strindberg, assistente de realização no último filme. "O ritual da cozinha era muito importante para o João. Ele cozinhava como fazia um filme. Era capaz de passar um dia inteiro à procura de um tomate. Por isso, as rodagens dos filmes não cabiam nos mapas estandardizados de trabalho." Era preciso inventar outro tempo. Aqui ficam rumores e ecos de um outro tempo, a rodagem de Vai e Vem:
— Monteiro chega ao cenário da casa de João Vuvu para se começar a apropriar do espaço; lê um livro e põe Wagner a tocar, "como um pintor, perante a tela em branco, limpa os pincéis que estão limpos, um vai e vem para combater a angústia", recorda-se Rita Pereira Marques. Mas César não reconhece os livros que a equipa de decoração colocou na prateleira, e manda vir volumes de casa, obras completas de Camilo, livros de Carlos de Oliveira e CD. Ficaram buracos por preencher, aproveitaram-se os livros arranjados pela produção. Ainda assim, um António Gedeão voou pela janela.
— Sinfonias de Mahler (ou Brel e Brassens) ajudavam diariamente a decidir o que filmar e como filmar. "Não havia planificação escrita", conta Ana Isabel.
— No primeiro dia de rodagem, uma sequência no interior da casa, a equipa encontrou coladas nas paredes fotocópias ampliadas de um texto que Godard escreveu, a pedido de Serge Daney, para o primeiro número da revista Trafic, de 1991. Título do texto: "La Paroisse Morte". Ou o cinema e a angústia de o fazer. "A equipa ficou intrigada, alerta", diz Strindberg.
— O Palácio dos Marqueses de Ficalho, na Rua dos Caetanos, em Lisboa, foi o cenário para a casa de João Vuvu. Num andar superior, vivia a marquesa. Que continuou os seus rituais, como ouvir missa pela rádio, cujo som invadia as rodagens. João César não se incomodava, e chegou a cruzar-se com a marquesa, trocando ambos citações de Corneille.
— Uma sequência do filme, incluída no guião, e com rodagem prevista na Guarda, acabou por não ser filmada devido à saúde de César Monteiro. Mas haveria outra razão: essa sequência, sem João Vuvu, mas com um novo alter-ego de J.C.M., seria um ponto de partida para mais um filme.
— As papinhas de milho de uma sequência do filme foram cozinhadas por João César. Para que não acontecesse o que se passou durante um plano de As Bodas de Deus, em que João encheu o prato de cozido à portuguesa, até transbordar, mas a cena acabou e ele não comeu. A comida estava fria, ele não podia fingir, não era actor.