E se você se rir de Matrix Reloaded?
Um diálogo, à saída de "Matrix Reloaded": "Isto é ou não ridículo? Não é para rir?". O interlocutor responde: "É!", mas depois o olhar petrifica-se, a expressão congela e é uma reviravolta... "Você não será um daqueles que odeia 'Matrix?", ameaça. O outro, subitamente, descobre-se traidor: olha para o lado, e de repente todo o grupo que antes acenara com a cabeça, "sim, é para rir", adquirira expressões ameaçadoras, como se fossem máquinas. Qual é a acusação? Rebeldia contra o universo Matrix.
Isto não é virtual, passou-se na América, numa sessão para a imprensa, em Los Angeles, do filme dos irmãos Larry e Andy Wachowski. Um jornalista americano, a quem, pelos visto, fizeram o "outing" de traidor, partilhou esse destino com alguns europeus que acabavam de ver "Matrix Reloaded" no Festival de Cannes, no dia em que o filme estreava em mais de três mil ecrãs de todo o mundo. O que ele queria dizer, com o seu relato, é que não há muito a fazer: ou se está dentro de Matrix, e tudo tem de estar de acordo com esse olhar, ou então pode passar-se ao lado (há outra hipótese: rir, e enfrentar olhares de metal). Não há volta a dar porque depois de "Matrix" (1999), "Matrix Reloaded" antes de chegar já era acontecimento.
"Matrix" começou do nada e foi algo que se construiu de forma insinuante. De repente, o fenómeno: o imaginário cyberpunk, de William Gibson a Philip. K. Dick, as cenas de acção dos filmes de kung fu (os actores no ar, cambalhotas), efeitos especiais por computador a conseguirem num "filme com pessoas" aquilo que só o cinema de desenhos animados (BD japonesa, mais concretamente) conseguira. Havia mesmo um efeito de câmara lenta que nunca víramos antes, que passou a ser repetido, ou parodiado, depois: o "bullet time", que permite ao espectador ver uma personagem a observar a passagem de uma bala que foi disparada e a evitar o impacto com uma elegante contorsão.
Com pózinhos de filosofia ocidental, um toque de zen, misticismo q.b., ficámos com um fenómeno cultural, um filme de acção singular, que apanhou os sinais e as obsessões da cultura popular, que por essa altura já se tinha instalado na Internet. Nesse filme, um grupo de humanos descobria que a realidade em que vivia era afinal uma ilusão, era um programa de computador criado pelas Máquinas que lideravam o mundo. Neo (Keanu Reeves), Trinity (Carie-Ann Moss) e Morpheus (Laurence Fishburne) começavam a revolta contra a máquina, contra Matrix.
Quatro anos depois, "Matrix Reloaded" chega com a consciência de ser filme-acontecimento e a responsabilidade de ultrapassar o filme anterior (e não só "Matrix Reloaded": durante 18 meses, em Sidney, na Austrália, estiveram em rodagem o segundo e o terceiro filme da série, "Matrix Revolutions", que vai estrear também este ano, em Novembro). A tendência, irresistível, tinha de ser integrar tudo aquilo o que foi dito e escrito sobre o fenómeno. Andy e Larry, os irmãos cineastas, levaram-se a sério?
A filosofia e o misticismo são mais óbvios, e podem, correndo o risco de acusação de traição, causar o riso. Houve quem se risse na sala. Não só porque há personagens que se chamam Fazedor de Chaves ou O Arquitecto, e que falam atirando pedaços de filosofia como se fossem bolos, mas por toda a gravidade no rosto destes heróis de acção, vestidos como top models mas angustiados pelo fardo do existencialismo: tipo, quem somos nós, o que fazemos aqui? A carga de filosofia, que é forçada, resulta como uma pedra na engrenagem, e não torna "Matrix Reloaded" mais diferente dos outros filmes de acção. Pelo contrário, o tomo dois da trilogia é mais igual aos outros filmes de acção, com ecos visuais da série "Alien", pitadas de paródia (às vezes involuntária?) como nos filmes de Bond (maus da fita que bebem vinho e falam inglês com sotaque francês, esse género) e figurinos e cenários com tom medieval como nas "prequelas" de "Star Wars". Há até momentos para quem conhece o circuito das "raves" e do Esctasy.
Neo, Trinity e Morpheus continuam a sua demanda, e Neo tem de se confrontar, cada vez mais, com o facto de ser ele o Eleito, o Escolhido para liderar a revolta (mas Keanu Reeves e Carie Ann Moss como par romântico é mesmo algo de virtual, porque cada um parece ser um clone do outro; reparem nas maçãs do rosto: iguais!).
As cambalhotas e as câmaras lentas que dão a sensação de que conseguimos agarrar as balas multiplicaram-se, mas assim "Matrix Reloaded" corre o risco de se parecer com os filmes que copiaram "Matrix". Em resumo, é o dilema de todas as sequelas de um fenómeno: ultrapassar a fasquia com sobrecarga.
Não há nada que nunca se tenha visto antes? Há, duas sequências que, pela mistura de acção coreografada (por Yuen Wo-Ping, mestre do cinema de Hong Kong) e efeitos especiais (equipa liderada por John Gaeta), parecem ter sido a razão de ser do filme. É o que não se vai esquecer: um combate entre Neo e a sua nemesis, Smith (Bruno Weaving), que é um combate (mais uma dança) entre Neo e 100 versões de Smith (é justo os espectadores irromperem em aplauso); e uma sequência de perseguição numa auto-estrada (vários quilómetros construídos de propósito para o filme), que tem o carimbo de proeza por todos os lados.
Mas mesmo assim, o jornalista que partilhara o momento em que, em LA, foi apontado como traidor, não resistia a repetir diálogos: "Adoro especialmente aquele em que o Fazer de Chaves diz: 'Eu sou o Fazedor de Chaves'. Alguém lhe pergunta: 'O que fazes aqui?'. E ele responde: 'Faço o que tenho a fazer'. Isto não é para rir?". O americano não deixou de prestar atenção aos olhos do grupo sorridente à sua volta, à procura de que a expressão se alterasse e irrompesse a acusação: "Você não será um daqueles..."
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Um diálogo, à saída de "Matrix Reloaded": "Isto é ou não ridículo? Não é para rir?". O interlocutor responde: "É!", mas depois o olhar petrifica-se, a expressão congela e é uma reviravolta... "Você não será um daqueles que odeia 'Matrix?", ameaça. O outro, subitamente, descobre-se traidor: olha para o lado, e de repente todo o grupo que antes acenara com a cabeça, "sim, é para rir", adquirira expressões ameaçadoras, como se fossem máquinas. Qual é a acusação? Rebeldia contra o universo Matrix.
Isto não é virtual, passou-se na América, numa sessão para a imprensa, em Los Angeles, do filme dos irmãos Larry e Andy Wachowski. Um jornalista americano, a quem, pelos visto, fizeram o "outing" de traidor, partilhou esse destino com alguns europeus que acabavam de ver "Matrix Reloaded" no Festival de Cannes, no dia em que o filme estreava em mais de três mil ecrãs de todo o mundo. O que ele queria dizer, com o seu relato, é que não há muito a fazer: ou se está dentro de Matrix, e tudo tem de estar de acordo com esse olhar, ou então pode passar-se ao lado (há outra hipótese: rir, e enfrentar olhares de metal). Não há volta a dar porque depois de "Matrix" (1999), "Matrix Reloaded" antes de chegar já era acontecimento.
"Matrix" começou do nada e foi algo que se construiu de forma insinuante. De repente, o fenómeno: o imaginário cyberpunk, de William Gibson a Philip. K. Dick, as cenas de acção dos filmes de kung fu (os actores no ar, cambalhotas), efeitos especiais por computador a conseguirem num "filme com pessoas" aquilo que só o cinema de desenhos animados (BD japonesa, mais concretamente) conseguira. Havia mesmo um efeito de câmara lenta que nunca víramos antes, que passou a ser repetido, ou parodiado, depois: o "bullet time", que permite ao espectador ver uma personagem a observar a passagem de uma bala que foi disparada e a evitar o impacto com uma elegante contorsão.
Com pózinhos de filosofia ocidental, um toque de zen, misticismo q.b., ficámos com um fenómeno cultural, um filme de acção singular, que apanhou os sinais e as obsessões da cultura popular, que por essa altura já se tinha instalado na Internet. Nesse filme, um grupo de humanos descobria que a realidade em que vivia era afinal uma ilusão, era um programa de computador criado pelas Máquinas que lideravam o mundo. Neo (Keanu Reeves), Trinity (Carie-Ann Moss) e Morpheus (Laurence Fishburne) começavam a revolta contra a máquina, contra Matrix.
Quatro anos depois, "Matrix Reloaded" chega com a consciência de ser filme-acontecimento e a responsabilidade de ultrapassar o filme anterior (e não só "Matrix Reloaded": durante 18 meses, em Sidney, na Austrália, estiveram em rodagem o segundo e o terceiro filme da série, "Matrix Revolutions", que vai estrear também este ano, em Novembro). A tendência, irresistível, tinha de ser integrar tudo aquilo o que foi dito e escrito sobre o fenómeno. Andy e Larry, os irmãos cineastas, levaram-se a sério?
A filosofia e o misticismo são mais óbvios, e podem, correndo o risco de acusação de traição, causar o riso. Houve quem se risse na sala. Não só porque há personagens que se chamam Fazedor de Chaves ou O Arquitecto, e que falam atirando pedaços de filosofia como se fossem bolos, mas por toda a gravidade no rosto destes heróis de acção, vestidos como top models mas angustiados pelo fardo do existencialismo: tipo, quem somos nós, o que fazemos aqui? A carga de filosofia, que é forçada, resulta como uma pedra na engrenagem, e não torna "Matrix Reloaded" mais diferente dos outros filmes de acção. Pelo contrário, o tomo dois da trilogia é mais igual aos outros filmes de acção, com ecos visuais da série "Alien", pitadas de paródia (às vezes involuntária?) como nos filmes de Bond (maus da fita que bebem vinho e falam inglês com sotaque francês, esse género) e figurinos e cenários com tom medieval como nas "prequelas" de "Star Wars". Há até momentos para quem conhece o circuito das "raves" e do Esctasy.
Neo, Trinity e Morpheus continuam a sua demanda, e Neo tem de se confrontar, cada vez mais, com o facto de ser ele o Eleito, o Escolhido para liderar a revolta (mas Keanu Reeves e Carie Ann Moss como par romântico é mesmo algo de virtual, porque cada um parece ser um clone do outro; reparem nas maçãs do rosto: iguais!).
As cambalhotas e as câmaras lentas que dão a sensação de que conseguimos agarrar as balas multiplicaram-se, mas assim "Matrix Reloaded" corre o risco de se parecer com os filmes que copiaram "Matrix". Em resumo, é o dilema de todas as sequelas de um fenómeno: ultrapassar a fasquia com sobrecarga.
Não há nada que nunca se tenha visto antes? Há, duas sequências que, pela mistura de acção coreografada (por Yuen Wo-Ping, mestre do cinema de Hong Kong) e efeitos especiais (equipa liderada por John Gaeta), parecem ter sido a razão de ser do filme. É o que não se vai esquecer: um combate entre Neo e a sua nemesis, Smith (Bruno Weaving), que é um combate (mais uma dança) entre Neo e 100 versões de Smith (é justo os espectadores irromperem em aplauso); e uma sequência de perseguição numa auto-estrada (vários quilómetros construídos de propósito para o filme), que tem o carimbo de proeza por todos os lados.
Mas mesmo assim, o jornalista que partilhara o momento em que, em LA, foi apontado como traidor, não resistia a repetir diálogos: "Adoro especialmente aquele em que o Fazer de Chaves diz: 'Eu sou o Fazedor de Chaves'. Alguém lhe pergunta: 'O que fazes aqui?'. E ele responde: 'Faço o que tenho a fazer'. Isto não é para rir?". O americano não deixou de prestar atenção aos olhos do grupo sorridente à sua volta, à procura de que a expressão se alterasse e irrompesse a acusação: "Você não será um daqueles..."