Javier Bardem não está aqui
O segundo desafio: sabendo que Javier Bardem engordou para fazer este filme, vai pensar imediatamente no modelo Robert de Niro/ "Toiro Enraivecido" - para o bem e para o mal, sinónimo de "número de actor" (aliás, foi uma referência que se tornou inevitável nas entrevistas feitas a Javier Bardem). Também em relação a esta questão se pode dizer: o actor não está aqui.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
O segundo desafio: sabendo que Javier Bardem engordou para fazer este filme, vai pensar imediatamente no modelo Robert de Niro/ "Toiro Enraivecido" - para o bem e para o mal, sinónimo de "número de actor" (aliás, foi uma referência que se tornou inevitável nas entrevistas feitas a Javier Bardem). Também em relação a esta questão se pode dizer: o actor não está aqui.
Sim, Javier Bardem é um dos intérpretes, um dos três que foram premiados com os Goya, os Óscares do cinema espanhol ("Às Segundas ao Sol" também venceu a categoria de melhor filme e de melhor realizador, suplantando o mais imediato favoritismo de "Fala com Ela", de Pedro Almodóvar, nos prémios da indústria espanhola referentes a 2002). O seu rosto está, mesmo, em todas as imagens publicadas nestas páginas. Dele se dirá: é um actor fabuloso, o que faz neste filme é inacreditável. Então? É tudo isso porque se deixa levar por uma lógica de desaparecimento e de invisibilidade. Javier Bardem não está aqui.
História de desempregados, homens condenados à clandestinidade existencial (veja-se a sequência em que assistem a um desafio de futebol: estão afastados do momento culminante, o golo, não vêem; e também não são vistos), "Às Segundas ao Sol" é um retrato de grupo que aniquila qualquer protagonismo - melhor, que precisou, para afirmar a sua originalidade enquanto filme, de uma série de vontades individuais de diluição no grupo: as dos seus actores. O aumento de peso de Bardem é mesmo uma questão crucial: nunca se sente o esforço do actor, a proeza que o individualiza (de qualquer forma, também não é comparável ao que fez DeNiro); sente-se, antes, aquilo que o banaliza, aquilo que em Santa, a personagem, é um corpo noermal, proletário, que se confunde com os outros (no limite, acredita-se emocionalmente que Santa não é interpretado por um actor; é um homem encontrado numa fila de desempregados; Javier Bardem não está aqui).
"Não trabalhei fisicamente o meu papel como Robert de Niro. Tentei apenas compreender o que acontecia a Santa e aos seus companheiros", disse o actor, explicitando a sua "démarche". O peso, sentiu ele e sente o espectador do filme, é um trabalho emocional. Como em relação às outras personagens, Jose, Lino, Ana ou Amador, é o mal-estar (o mau cheiro, o suor) que diz da vergonha, da frustração, da raiva das personagens. E uma das singularidades do filme: diluir a individualidade dos intérpretes numa imagem social, fisica e emocionalmente identificáveis, sem destruir a sua complexidade de personagens, sem reduzir as figuras a bonecos. A propósito da vitória deste filme de Fernando Léon de Aranoa nos Goya, do seu sucesso e do facto de ter sido esse título, e não "Fala com Ela", a ser enviado pela indústria espanhola, a Hollywood, como candidato a melhor filme estrangeiro, quis retirar-se uma lição: o realismo social ("Às Segundas ao Sol") vencia sobre o artificialismo flamejante (Almodóvar). Ora, para além daquilo que, de forma mais evidente, separa o trabalho dos dois cineastas ou as suas intenções (Fernando Léon de Aranoa propõe um cinema que conte histórias sobre "os que vivem nos bairros, os que lêem a vida das revistas, os que têm problemas em chegar ao fim do mês, a meio do mês, os que têm problemas em começar o mês. As nossas histórias, os nossos filmes, as nossas esperanças deviam falar sobre eles") e aceitando, também, que "Às segundas ao sol" foi também um fenómeno social (os espanhóis descobriam nos ecrãs o outro lado da Espanha do "milagre económico" de Aznar), é mais interessante aquilo que aproxima os dois filmes em termos cinematográficos: um cinema de formas eminentemente populares (que tal assim para este caso: militância social, realismo documental o riso amargo da frustração e do envelhecimento tal como a comédia italiana esboçou nos anos 70?). É um olhar caloroso sobre o bairro e a malta do bairro (Almodóvar podia também propor um cinema sobre "os que vivem nos bairros, os que lêem a vida das revistas, os que têm problemas em chegar ao fim do mês..."). E, como todos comprovaram, Javier Bardem não está aqui.