Richard, Renée e Catherine, corpos do baile
Isto é tradicional (e por isso até anacrónico). O melhor que se pode dizer do filme, que foi realizado por um coreógrafo, Rob Marshall, cuja anterior experiência atrás da câmara foi a adaptação televisiva do musical "Annie", é que não estraga o material de base, o prodigioso universo, esfuziante e cínico, de Bob Fosse. Perante o qual Marshall cai de joelhos de admiração.
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Isto é tradicional (e por isso até anacrónico). O melhor que se pode dizer do filme, que foi realizado por um coreógrafo, Rob Marshall, cuja anterior experiência atrás da câmara foi a adaptação televisiva do musical "Annie", é que não estraga o material de base, o prodigioso universo, esfuziante e cínico, de Bob Fosse. Perante o qual Marshall cai de joelhos de admiração.
Quanto às nomeações, elas celebram não a renovação, mas o esforço clássico de um corpo de baile em cima de um palco, como nos velhos tempos, quando actores eram bailarinos e os bailarinos actores e viviam debaixo da protecção do estúdio que os obrigava a cantar, dançar e estar em frente a uma câmara. Richard Gere, Renée Zellweger e Catherine Zeta-Jones, ilusão desses actores "à antiga", treinaram durante dois árduos meses (apavorados com a hipótese do ridículo), exactamente como se prepararassem um musical para os palcos da Browaday. Foram estes os corpos encontrados para a adaptação cinematográfica de "Chicago", projecto antigo, que fez sonhar outros nomes, como Madonna.
Renée e Catherine não se pouparam a esforços para mexer as pernas. A morena, com anterior experiência dos palcos (começou como corista, para ir directo ao assunto), tem de forma mais evidente a silhueta de uma figura feminina de Fosse, e cumpre "All that Jazz!" sem deslumbres. Quanto à loira Zellweger, se à partida se julgaria que não tinha o temperamento adequado para um musical, onde desatasse a cantar e a dançar, não desmerece (há um momento em que evoca Marilyn em "My Heart Belongs to Daddy", no filme "Vamo-nos Amar", de Cukor, sem ser chocante). Gere, parecendo que acabou de sair do "Cotton Club" de Coppola (mas já lá vão duas décadas), é que se esmera no tap-dancing. Mas fá-lo incorporarando perfeitamente o actor e o bailarino, fazendo das duas coisas uma só ou algo de diferente da mera habilidade — tal como no musical as canções e a narrativa não se devem interromper uma à outra, mas prolongarem-se. Também anda por lá um tocante John C. Reilly... vejam como ele desliza enquanto canta "Mr. Cellofane"...
"Chicago" é um conto (a)moral, onde irrompem desejo, impostura, a obsessão da fama, o triunfo selvagem do sexo feminino. Passa-se nos anos 20, numa prisão, onde foram parar duas mulheres, por terem morto os amantes. Elas são Roxie (Renée) e Velma (Catherine). A primeira é uma "starlette", a segunda já uma estrela que tem os homens a seus pés. A admiração e a rivalidade mútuas aquece-lhes as pernas, enche-as de frenesi. E entra em cena um advogado (Gere), que vai transformar os crimes de Roxie e Velma no argumento de uma feira de monstruosidades morais, que iluminará o nome das criminosas a néon. "That’s Chicago!", resume o charlatão, com o qual Gere faz esta pirueta na sua carreira.
Por falar em piruetas, Rob Marshall não se apropria da linguagem de Fosse, não encontra para ela um equivalente cinematográfico. Regista apenas os "números", em estúdio, com adereços estilizados (as cadeiras, os néons, os chapéus, marcas de Fosse), como se tudo se passasse num palco, fazendo desses momentos a projecção dos desejos irreprimíveis depersonagens que vivem na dura realidade. A Fosse o que é de Fosse, então.