Irreversível
É fácil estar contra um filme quando ainda antes de ele chegar já vem carimbado como "filme choque". Foi o que aconteceu no Festival de Cannes, quando parecia que havia uma "operação" em desenvolvimento.
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É fácil estar contra um filme quando ainda antes de ele chegar já vem carimbado como "filme choque". Foi o que aconteceu no Festival de Cannes, quando parecia que havia uma "operação" em desenvolvimento.
Do estilo "golpe mediático": um casal de actores famosos (Vincent Cassel/Monica Bellucci), um realizador, Gaspar Noé (argentino a viver e trabalhar em Paris), com fama de "sulfuroso" (mas isso às vezes não é só uma forma de mascarar habilidade para o "marketing"?), jornais e revistas a gritarem "vem aí escândalo", vem aí cena de violação (de nove minutos, em plano sequência, sem truques) e as bilheteiras à espera. O título, tão afirmativo (e tão evidente) como um "slogan", preparava o pior: "Irreversível". Seria mesmo?
O "golpe" parecia confirmar-se aos primeiros minutos de filme: nem o matraquear obsessivo da muralha sonora concebida por Thomas Bangalter, dos Daft Punk, se sobrepôs ao barulho das cadeiras da sala que se esvaziava. Em Cannes forjou-se o mito do ódio de estimação.
As agências noticiosas foram atrás do "voyeurismo" e da "violência", relatando que os serviços locais de emergência tiveram que administrar oxigénio a cerca de 20 espectadores que desmaiaram durante a sessão da meia-noite.
Era o filme para odiar. Melhor: para ignorar. E foi o que fez a imprensa francesa, com dose considerável de soberba. "Foi uma atitude reaccionária. Não houve a mínina tentativa de tentar olhar para o filme". Quem fala (ao telefone, de Paris) é Gaspar Noé, o tal realizador com fama de provocador, que, afinal, mostra em "Irreversível" um dos olhares mais púdicos (isto é escrito sem propósito provocador) sobre o casal.
Sim, coloca o espectador em perigo, e há sequências em que é difícil manter os olhos abertos. Uma coisa e outra nascem de vontade de provocar, e do gosto de administrar uma fama de polémico de que ele já não se livra; ganhou-a com curtas-metragens e com a longa anterior, "Seul contre tous" (1998).
Pode considerar-se que o filme é o gesto inconsequente de um adolescente retardado. Mas também se pode apostar nisto: Gaspar Noé é um cinéfilo que, para além de amar "2001 Odisseia no Espaço", de Kubrick, ou "Un Chien Andalou", de Buñuel, quer devolver ao espectador uma "experiência de catarse" - "algo que ficou perdido", diz, nos libertários anos 70
. "Irreversível" pode ter nascido de um desafio adolescente. Mas como em tudo no filme, nada é tão simples e nada é tão certo. Mesmo de olhos fechados, que pode ser a única forma de ver algumas cenas, é possível tactear os corpos de "Irreversível": flutuam em bolhas de lirismo.
e que tal um porno? É melhor começar pelo princípio. E no princípio, Gaspar Noé cruzou-se com um actor francês, Vincent Cassel, e propôs-lhe, a ele e à mulher, a italiana Monica Bellucci, que arriscassem "um porno, um filme sexualmente explícito, um filme que mostraria o que Tom Cruise e Nicole Kidman tinham falhado [com Kubrick, em 'Eyes Wide Shut']".
Vincent e Monica não arriscaram. "Propus então outra coisa", continua o incansável Gaspar, 39 anos. "'E se fizéssemos um filme de violação e vingança'? Um filme que mostrasse uma cena de violação como não tinha sido ainda mostrada, nem em 'Deliverance' [de John Boorman] ou 'Cães de Palha' [de Sam Peckinpah]?" - aqui é o adolescente Noé a falar, a lembrar-se do cinema dos anos 70 e a desmultiplicar-se em desafios.
Só com duas vedetas, e com um terceiro actor, Albert Dupontel (faz o amigo do casal, personagem que vai revelando uma inquietante ambiguidade - reparem na sua passividade...), lançou-se à improvisação. Sem argumento ("se tivesse, não conseguiria financiamentos"), mas com uma ideia fixa: inverter a estrutura narrativa, progredir do presente para o passado. Começar (de forma brutal) com uma cena de violência num clube nocturno (com o nome, também brutal, de "Rectum"); recuar, para outra cena de violência, num túnel vermelho, num plano sequência: a violação; finalmente, o apaziguamento, ao entrar pela vida íntima de um casal - onde já estava tudo, a destruição. "O tempo destrói tudo", diz uma legenda, como (mais uma vez) um "slogan".
Resumindo, descodificando: Monica Bellucci é violada; Vincent Cassel, o namorado, vinga-se. O filme começa com a vingança, depois segue a cena que supostamente lhe deu origem e a explica. Será mesmo assim?
Não. Ao virar do avesso a estrutura, personagens e acontecimentos libertam-se das relações de causa e efeito. A vingança deixa de ser a resposta a um crime; passa a ser algo de inescapável no caos irreversível. Monica, Vincent e Albert (um amigo do casal) são o trio perdido nessa voragem, e o filme capta a palpitação de perda. Bellucci verbalizou assim: "São três insectos perdidos no tempo". Pela forma como os planos balançam no indefinível, parecem perdidos no espaço (como em "2001...").
O espectador está perdido com eles, sem possibilidade de identificação. É isso que seduz num filme tantas vezes grandiloquente e óbvio: Noé utiliza um dispositivo programático ("o filme ao contrário") e, como uma batalha que parece perdida, luta para o transcender. A camisa de forças - como às vezes funciona a estrutura em "flashback" de "Memento", o filme de Chris Nolan com que "Irreversível" tem sido comparado - revela-se aqui possibilidade de libertação: atira "Irreversível" para os domínios mais inexplicáveis da experiência hipnótica dos sentidos (alguns críticos franceses fizeram o "mea culpa", e após terem ignorado o filme, conseguiram regressar a ele para reconhecerem "momentos de pura poesia").
"Se a estrutura fosse convencional, seria um filme banal, psicológico, em que havia um crime, e a vingança", propõe Noé. "E teria um final histérico. Mas a estrutura invertida permite que seja um filme sobre o tempo. Podia ser um típico filme de vingança dos anos 70, com Charles Bronson, mas assim deixa de haver uma relação de causa e efeito entre os actos. Até porque, se se reparar, a vingança acaba por ser feita sobre a pessoa errada, não sobre o violador".
kubrickiano. "2001-Odisseia no Espaço", de Kubrick, é o filme favorito deste ex-assistente do argentino Fernando Solanas ("Tangos - O Exílio de Gardel" e "Sul"). Noé é um espectador voraz, capaz de colocar na lista das suas preferências o cinema de Tod Browning e o videoclip que Michel Gondry fez para os Daft Punk, "Around the World".
O cartaz de "2001...", um dos objectos sobre o filme que colecciona, aparece em "Irreversível", que tem sido classificado de "kubrickiano" pela ambição totalitária e cósmica, pelo pessimismo - até pela forma como mistura Beethoven, Mahler e Thomas Bangalter (Daft Punk). Mas a referência "kubrickiana" será antes "Eyes Wide Shut"; passou algo, para este projecto, daquele desafio inicial feito a Cassel/Bellucci. "Irreversível" é um filme sobre as forças destruidoras no casal, é pesado, gongórico e, simultaneamente, evanescente e doentio - como uma valsa. E como Kubrick fez a Tom e Nicole, Noé joga com o voyeurismo do espectador. Mas o cineasta não é só manipulador: uma das coisas mais comoventes do filme, é, mais uma vez, a forma como Noé aceita sabotar o princípio formal que se impôs, disponibilizando-se para os pedaços de vida que os actores improvisam.
"Monica e Vincent são um casal, em França todos os conhecem e existe a curiosidade em vê-los nus ou na intimidade. Não posso dizer que isso não faça parte do filme, mas não joguei deliberadamente nisso. Na altura de 'Eyes Wide Shut' dizia-se que havia cenas escabrosas e, na verdade, não havia; o meu olhar também é pudico. É claro que os actores só fizeram o que queriam fazer. Todo o filme é improvisado, e eram eles que estabeleciam os limites, até onde é que queriam ir".
Aí, é impressionante o que faz Bellucci. Há que dizer que se sujeitou a uma operação perversa. Tem sido a "bimba" de serviço em algum cinema italiano, oferecendo uma sensualidade óbvia, conquistadora, para mostrar que nela vivem as divas italianas do passado. Ora, com "Irreversível" é isso que Noé castiga: não foi por que se sujeitou, na tal cena de violação de nove minutos, a uma imolação, que ganha o respeito e a serenidade de actriz?
"Foi ela que estabeceleu os limites, que decidiu o que podia ou não fazer", conta o realizador. "Monica é muito mais interessante como pessoa, do que os filmes até agora tinham mostrado. Dão-lhe sempre maquilhagem e guarda-roupa e diálogos parvos. Aqui, nem sequer tinha diálogos, só podia ser ela mesma. Teve mais colhões do que qualquer um de nós. O grande risco do filme foi o dela".
O risco também é o do espectador. "Ver um filme é uma experiência de catarse", diz Gaspar. "É por isso que as pessoas vão ao cinema, para terem uma experiência de catarse física ou sairem mais enriquecidas psicologicamente - é claro que como no meu filme as pessoas saem a meio, essa experiência pode ficar interrompida (risos). Os espectadores já viram tudo, e já não acreditam em nada, já sabem que tudo é artifício. A cena de violação foi filmada num plano sequência, e é isso que perturba: dá a ilusão de que não há truques. Mas não, todo o cinema é artifício. De qualquer forma, é interessante que, pelo menos em França, os espectadores que mais acharam a cena insuportável tivessem sido homens; foram eles que saíram. Se calhar foram obrigados a confrontar-se com fantasmas, os que ainda povoam as relações entre homem e mulher. Há dias ia na rua e vi um miúdo a meter-se com uma mulher, um miúdo normal; de repente parecia que estava ali em potência o violador do filme. Dito isto não estou a querer dizer que 'Irreversível' é um filme feminista".
Nem é preciso chegar a isso. Basta dizer que, no meio do barulho mediático, do barulho sonoro e visual, o que fica deste filme não é violação, não é o "choque". É o apaziguamento, o silêncio - quase que apetece dizer, sem truques.