A americanização de John Woo

Um dia, ele há-de fazer "westerns". Para já, há um plano, na abertura de "Códigos de Guerra": o cenário de Monument Valley, que pertenceu a John Ford, "realizador de westerns". E para já, mais do que a conquista ou usurpação de um território mítico, John Woo bate à porta para saber se esse cenário o aceita - se a América o aceita. É isso o que ele quer.

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Um dia, ele há-de fazer "westerns". Para já, há um plano, na abertura de "Códigos de Guerra": o cenário de Monument Valley, que pertenceu a John Ford, "realizador de westerns". E para já, mais do que a conquista ou usurpação de um território mítico, John Woo bate à porta para saber se esse cenário o aceita - se a América o aceita. É isso o que ele quer.

John Woo, realizador de filmes de acção de Hong Kong (há oito anos a trabalhar em Hollywood), sente-se americano, quer ser americano. Por isso, quis fazer um filme de guerra. Durante a rodagem chamaram-lhe "general Woo". É um passo (mais tarde, como já anunciou, fará um musical - chegaram a oferecer-lhe a oportunidade de realizar um, "Chicago", mas a incompatibilidade de "timings" adiou a hipótese - e certamente vai fazer um "western", género por excelência do cinema americano).

John Woo foi à guerra, à II Guerra Mundial. Para trás, ficou o empolamento auto-referencial do bailado barroco "Face/Off" (em que encontrou as suas marcas de realizador de acção, pelo menos tal como foram assimiladas por Hollywood) e um divertimento-encomenda, "Missão: Impossível II". Para todos os efeitos, ainda era um "cineasta de Hong Kong", adulado por muitos, referenciado por tantos outros, mas um "outsider" - que, ainda por cima, era obrigado a ver cada filme feito na América ser comparado com um filme que tinha feito em Hong Kong.

Agora, despiu-se dos sinais mais evidentes da sua assinatura - "O meu tipo de cena de acção é muito elaborada, como um bailado, mas desta vez quis ser um pouco mais sério, quis que o espectador fosse metido dentro de um campo de batalha para presenciar o terror. Quis que fosse mais real." E, com assinalável humildade e reverência, abraçou toda uma tradição do cinema de guerra americano, de Raoul Walsh a Samuel Fuller, passando por Fred Zinneman. Curioso (ou talvez não): o público e a crítica americanos não gostaram da americanização de John Woo. Outra curiosidade: o mesmo tipo de reacção, desinteressada, acolheu "Bullet in the Head" (1990), um dos filmes que John Woo considera mais pessoais da sua fase de Hong Kong, e em que também suspendeu o fogo-de-artifício de balas e explosões em favor de uma narrativa mais clássica.

Integração

Não é por acaso que, em "Códigos de Guerra", John Woo conta uma história que durante anos não foi contada: a da participação dos índios navajo nas campanhas do Pacífico durante a II Guerra, como "code talkers". Cerca de 400 navajos foram recrutados das suas reservas, no país que os ignorava, para, usando a sua língua (complexa, não escrita e apenas dominada por alguns), transformarem cerca de 211 palavras e expressões do vocabulário militar em código, impossível de ser "quebrado" pelos japoneses.

A eficácia fez-se sentir: antes, os Marines gastavam em média meia hora para transmitir uma mensagem, que os japoneses descodificavam; passaram a gastar 20 segundos. Por exemplo, durante a batalha de Iwo Jima mais de 800 mensagens foram transmitidas por seis soldados navajos, o que foi considerado decisivo para esse episódio da II Guerra Mundial.

Depois do conflito, estes patriotas foram obrigados a nada divulgar das suas actividades, que ficaram por reconhecer. O código foi mantido secreto até 1968, e só mais tarde é que se revelou também que cada "code talker" tinha um marine protector, investido de uma missão: impedir a todo o custo que ele fosse apanhado; nem que para isso o tivesse que matar.

É esta duplicidade que amarra os dois pares do filme: o amargo e soturno Joe Enders/Nicolas Cage, marine destacado para proteger ("baby sit", diz ele) um recruta navajo, o solar Ben Yahzee/Adam Beach; e, como um espelho, a dupla Christian Slater/Roger Willie. As diferenças entre os dois pares (sobretudo, a distância emocional que Cage inicialmente impõe ao seu "protegido", para ele próprio se proteger da missão que eventualmente terá que cumprir) servem a Woo para criar mais uma cumplicidade celestial, entre homens, no inferno, como nos seus "thrillers".

Mas resulta evidente que é menos isso que lhe interessa agora. Que é o mesmo que dizer: menos do que a personagem de Nicolas Cage, a Woo interessa a personagem (e a figura) de Adam Beach, o navajo, o "outsider" como ele, Woo (que admitiu ter feito um "remake" da cena, de "Até à Eternidade", de Fred Zinneman, em que o italo-americano Frank Sinatra se batia num bar contra um grupo de soldados, olhado com sentido de protecção por Burt Lancaster; agora é o "navajo" Adam Beach, olhado por Cage).

"Códigos de Guerra" fala da América do ponto de vista da "minoria étnica" que se quer integrar, e que abdica da sua língua, do seu nome (como os marines de "Windtalkers", descendentes de polacos ou de italianos, que passaram a chamar-se outra coisa qualquer para serem "americanos") ou (como o navajo) que põe a sua língua "proibida" ao serviço de um ideal maior do que o sistema que o exclui, a América.

"Códigos de Guerra" é como um filme americano dos anos 50, um reflexo da paixão de Woo pelos filmes da sua juventude, com as personagens a cumprir a tipologia: o "tipo da cidade", o "tipo do campo", o "veterano cínico", e o cativante "outsider" com um sorriso que é uma máquina de fazer reféns e através do qual se demonstra o sonho americano. Por aqui passam Walsh, Zinneman (Fuller menos, porque não há a pulsão individualista e anárquica; Woo quer integrar-se), através de um classicismo sereno, integrador, várias vezes comovente, que é a forma de o chinês encontrar o seu sonho americano.

"Estava à procura de um projecto como este que me fizesse sentir orgulhoso de ser americano", disse, numa entrevista. "Na verdade, não me considero um 'outsider'. Ao crescer em Hong Kong, ouvíamos muitas histórias da América. Sabíamos a história da América. Adoro filmes americanos, como filmes europeus, japoneses. Claro, adoro John Ford, Howard Hawks, Stanley Kubrick e Sam Peckinpah. Sim, cresci com filmes americanos." E acrescentou: "O espírito dos pioneiros interessa-me."

John Woo vai voltar a filmar com a estrela que revelou em Hong Kong, Chow Yun-fat. Vai chamar-se "Man of Destiny". É um drama épico, a história da construção dos caminhos de ferro americanos, no século XIX. É quase um "western".