Era Uma Vez... Manchester
Quando se tem de um lado a lenda e do outro os factos, que se imprima a lenda! Foi a máxima de John Ford, "realizador de westerns". O cenário neste caso não é Monument Valley, é a urbano-depressiva Manchester. E o género em causa oscila entre o musical e o filme "biográfico" (ainda por cima: biografia de uma cidade). Que fazer, então? O mesmo que em relação ao "western": que se imprima a lenda...
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Quando se tem de um lado a lenda e do outro os factos, que se imprima a lenda! Foi a máxima de John Ford, "realizador de westerns". O cenário neste caso não é Monument Valley, é a urbano-depressiva Manchester. E o género em causa oscila entre o musical e o filme "biográfico" (ainda por cima: biografia de uma cidade). Que fazer, então? O mesmo que em relação ao "western": que se imprima a lenda...
O "era uma vez" pode começar assim: o reinado da delapidada Manchester sobre o império musical deveu-se ao facto de, durante a década de 80, ter tido a melhor música, a melhor discoteca e o melhor mestre de cerimónias. Tudo começou em 1976, numa actuação dos Sex Pistols. Entre os espectadores, estava um apresentador de TV de uma cadeia regional, que citava com à-vontade Yates e Warhol (ainda hoje isso é original) e que, no meio da confusão, teve uma ideia. Chamava-se Tony Wilson, e a sua ideia é a história do filme "24 hour party people".
Entre a segunda metade dos anos 70 e a década de 90, o "circus maximus" de Wilson chamou-se Factory Records, a editora que lançou provavelmente a música mais triste e exuberante da pop, certamente aquela que era posta à venda com as capas mais bonitas: da desolação poética dos Joy Division (cujo líder, Ian Curtis, se suicidou aos 23 anos), ao funk alucinado dos Happy Mondays, passando pela hipnose descarnada dos New Order.
Entre Joy Division e Happy Mondays, Manchester passou a Madchester; da depressão cinzenta nasceu a cultura "rave", a dança e as drogas coloridas. A história, contada no filme de Michael Winterbottom, durou cerca de 20 anos, até a Haçienda, o templo da dance-music gerido por Wilson, se afundar em ecstasy e armas.
o mito. "Estava no Canadá a rodar um filme", explicou Winterbottom, 41 anos, a um grupo de jornalistas no Festival de Cannes, "quando pensei na zona onde cresci e como era interessante fazer um filme sobre aquela cidade e a sua música. Percebi logo que a Factory era a história a contar e que Tony Wilson a personagem principal, porque teve uma vida dupla: repórter da TV e 'manager' da Factory e da Haçienda. O elemento musical foi decisivo. Muitas das personagens que povoam o filme são da minha geração".
Como contar o "era uma vez..."? Não teve dúvidas: "O filme teria de ser uma réplica daquilo que fez da Factory algo de único." E o que é isso, para além da tentação hiperbólica e rumores? É verdade que Wilson assinou um documento, com sangue, declarando que a Factory não tinha domínio sobre as suas bandas e o material que elas produziam?
"De facto, quando lemos histórias sobre a Factory, tudo é confuso. Na Factory, a ideia era operar não como uma companhia; antes, trabalhar como um grupo de pessoas que deixavam as outras fazer o que quisessem. O filme teria de ter esse espírito", diz o realizador (mas não pensávamos todos que por trás da afirmação estética de um produto Factory só podia estar uma linha de montagem disciplinada?).
Por isso, "24 hour party people", homenagem a uma cidade, mistura reconstituição e material de arquivo. Como uma ficção, há actores que interpretam personagens (quase-sósias de Wilson, Ian Curtis, dos dementes irmãos Shaun e Paul Ryder - dos Happy Mondays - ou do produtor Martin Hannet). Como num documentário, irrompem alguns dos retratados, e estes (o próprio Wilson, Mark E. Smith, dos Fall, Howard Devoto, dos Magazine) comentam as personagens que ali ao lado usam o seu nome. Há um momento eloquente de distância brechtiana: Devoto diz ao espectador que não se lembra de ter tido um encontro sexual com a mulher de Tony Wilson depois de o vermos (a sua personagem) cometer o "delito".
O mais decisivo foi fazer da personagem de Tony Wilson o mestre de cerimónias. É ele que potencia a hibridez e a anarquia, ele, génio e burlão, narrador em que obviamente não se confia. Interpretado com bravura por Steve Coogan (alguém que andou também com discos dos Joy Division debaixo do braço e que frequentou a Haçienda), o "boneco" Wilson, tal como é trabalhado por Coogan, é de uma pomposidade sem limites e sem auto-censura. Mas a sua impostura está sempre debaixo do fogo da (auto)paródia, o que lhe dá alguma candura - arriscaríamos: autenticidade. A ironia desmitifica, e assim se reforça o mito.
A palavra, então, a um Wilson com penetrantes olhos azuis: "Quando Michael e o argumentista Frank Cottrell Boyce me falaram no projecto, mencionaram as datas 1976 e 1992. Foi isso que me levou a aceitar o projecto: eles tinham percebido a alvorada 'punk' e a morte do 'acid'. Mas achei que me iam usar como elo para a música. Descobri mais tarde que queriam explorar ao máximo a minha pessoa. É assim que somos no Noroeste de Inglaterra. É o nosso sentido de humor. Sabia que eles iam destruir a minha vida privada. Mas ser interpretado por Steve Coogan foi lisonjeador."
O diálogo a seguir podia ser um pedaço de "24 hour party people":
Boyce, argumentista: "Eu queria celebrar os êxitos de Factory, não documentá-los. A questão é esta: a verdade é mais extravagante do que eu conseguiria alguma vez contar. Queria fazer algo de grandioso, e ouvir o que o Tony tinha a dizer. Tudo ali é verdade."
"Desculpe-me", interrompe Wilson. "A maior parte do que ali está é mentira. Tudo se resume a uma construção intencional a partir de uma série de coisas que se murmuravam, uma série de pensamentos imaginários, por aí fora. O meu parceiro Peter Saville [da Factory] é um génio, apesar de não ter gostado do filme porque não aparece muito... Mas ele diz que o filme captou inadvertidamente acasos felizes. Percebem não percebem? O milagre é que apesar das mentiras o filme consegue dizer a verdade sobre o 'punk', o 'acid-house' e a Factory. Mas não devem acreditar em tudo: não sou megalómano" (os seus protestos por o filme versar demasiado sobre a sua pessoa ficaram em "24 hour party people", como se poderá confirmar com os diálogos).
É claro que Winterbottom não tem, enquanto cineasta, a bravata de uma figura "bigger than life", desse "pivot" excêntrico chamado Tony Wilson. E, assim, a transgressão das regras impositivas do "biopic" não é sempre formalmente exuberante. Há, para além disso, um dilema: quem nunca andou com um disco dos Joy Division debaixo do braço, achará "24 hour party people" desnecessariamente codificado; quem conhece poderá não encontrar nada de novo - mas ficará até ao fim para ouvir a música ou provar o sabor da nostalgia. Que resiste a "Love will tear us apart"?
haçienda.Fazer um filme sobre pessoas que existiram, e a maior parte delas estando vivas, introduziu um elemento de tensão - e não só porque Shaun Ryder queria uma estrela de Hollywood a interpretá-lo. "Tivemos de convencer as pessoas que queríamos celebrá-las, que o filme não pretendia ser um ataque", conta Winterbottom.
Martin Moscrop, o guitarrista dos A Certain Ratio, foi contratado como consultor técnico e musical - para garantir que os actores tinham os maneirismos correctos dos músicos em palco. Barney Summers e Peter Hook, dos New Order, emprestaram instrumentos, em favor da autenticidade. A Haçienda foi recriada, a partir das fotografias de uma tese de graduação - o resultado é uma réplica do clube quando abriu, em 1984. As portas são as originais, pertencem a Peter Hook. Cerca de 1500 figurantes (e "habitués") foram contratados para as últimas sequências do filme, planos de conjunto de uma "dance the night away".
O clube foi devolvido à cidade por uma noite, e tudo se conjugou para uma torrente emocional: "Não chorei quando fecharam o clube. Não chorei quando fiquei sem sítio para ir à noite. Não chorei quando leiloaram a Haçienda. Mas chorei quando entrei naquele espaço recreado", confessou Wilson. Que, pelos vistos, não desiste de ser comerciante das suas descobertas.
Uma das razões por que participou no filme, diz, foi para assegurar que os Happy Mondays, a "sua" banda, tinham o seu merecido quinhão de fama. "As pessoas pensam que os Joy Division e os New Order estão entre as melhores 50 bandas de sempre. É verdade. Mas esquecem que os Happy Mondays também são uma das grandes bandas da história."
E já que foi ele que iniciou tudo, ele que acabe esta história. "A cultura da dança, a cultura ecstasy, toda essa porcaria de Ibiza deveria estar morto e enterrado nos finais de 90 para podermos começar algo de novo. Os cartéis de ecstasy estavam a fazer mau negócio nos finais de 90, estavam a vender uma merda de ecstasy. Colocaram então no mercado produto de qualidade, o que em 1999 levou tragicamente a um ressurgimento dessa cultura. Mas quanto mais cedo emergirem miúdos que tocam música inteligente e apagarmos a dance culture, tanto melhor. O punk e acid foram as duas últimas revoluções. Mas há uma nova revolução emergente na cultura britânica. Temos é de encontrar um rótulo e estarmos à espreita. Se acontecer algo, voltarei de novo e tentarei vender isso no resto da Europa."