Que bicho mordeu a Sam Raimi
Já toda a gente aproveitou para jogar o jogo das semelhanças (ou o que pensa ser as semelhanças): Sam Raimi, realizador, tal como Peter Parker, adolescente atarantado, a última palavra no modelo "falhado do liceu", também sofreu uma mutação. Houve uma altura em que Sam era um miúdo do Michigan, obcecado por BD e por filmes. Começou a fazer curtas-metragens aos 13 anos, e já no âmbito do filme de terror, como se estivesse a antecipar a que viria a ser a "ética" contida nos seus filmes: "Os inocentes devem sofrer, os culpados devem ser castigados e todos devemos provar o sabor do sangue para sermos homens".
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Já toda a gente aproveitou para jogar o jogo das semelhanças (ou o que pensa ser as semelhanças): Sam Raimi, realizador, tal como Peter Parker, adolescente atarantado, a última palavra no modelo "falhado do liceu", também sofreu uma mutação. Houve uma altura em que Sam era um miúdo do Michigan, obcecado por BD e por filmes. Começou a fazer curtas-metragens aos 13 anos, e já no âmbito do filme de terror, como se estivesse a antecipar a que viria a ser a "ética" contida nos seus filmes: "Os inocentes devem sofrer, os culpados devem ser castigados e todos devemos provar o sabor do sangue para sermos homens".
A verdade é que Sam Raimi cresceu e agora, com o sucesso de "Homem-Aranha", um dos filmes mais rentáveis das bilheteiras americanas, anda nos céus de Hollywood. Mas houve uma altura em que Sam Raimi era "apenas" um cineasta de culto (e não há aqui nenhum culto do miserabilismo). Mordido por um bicho? Provou o sabor do sangue?
Os fãs de Sam asseguram que continua a ser um "average Joe" (traduzindo: "um de nós") e, no fundo, o "fanboy" de sempre (traduzindo: continua "genuíno", faz os filmes como quem persegue até aos infernos a sua BD favorita). O próprio diz que nunca pensou que algum dia conseguisse chegar à concretização do seu sonho, realizar "Homem-Aranha" ("eu era um dos últimos cineastas da lista"). Em Sam Raimi o complexo de Peter Parker continua a espreitar por trás da máscara de Spider-Man?
Tem sido uma carreira com tantas cambalhotas, tantas como os exercícios de ginástica desportiva do "homem aranha" nos céus de Manhattan, que vem a propósito falar em "dualidade" ou "esquizofrenia".
É preciso não esquecer que em tempos Sam Raimi (re)criou praticamente um sub-género dentro do horror, o "comedic horror" - como, também em outros tempos (ainda não o dos "blockbusters"), fez outro bizarro, o neozelandês Peter Jackson. Há o "Lubitsch touch"? Com as devidas ressalvas, em filmes como "The Evil Dead" (1982), "Evil Dead II" (1987) ou "Army of Darkness" (1993) manifestou-se algo a que se poderia chamar o "raimiesque touch" - uma mistura desenfreada de grotesco, negrume e medo, comandada por uma câmara de filmar com devaneios operáticos e instintos surrealistas e medievais.
Coube-lhe, também, realizar um dos maiores filmes do cinema americano dos anos 90 (e foi logo a abrir a década): "Darkman", espiral de paródia e lirismo que começava por ser uma variação do tema de "O Fantasma da Òpera" e se elevava até ao delírio, acompanhando a progressiva aniquilação de uma personagem de excluído (Raimi colocava-se, de forma pungente, do lado do marginalizado e o filme ia-se tornando cada vez mais abstracto e delirante à medida que a personagem se ia destruindo).
Em "Rápida e Mortal" (1995) os efeitos do "raimiesque touch" entraram em desagregação, eram já manifestações de cabotinismo, e depois o realizador metamorfoseou-se em cineasta banal em filmes como "O Plano" ou "O Dom" (terá sido aqui que foi mordido?).
dois rostos. "Homem-Aranha" aparenta ser um regresso aos amores iniciais. Mas é um filme com dois rostos. Há, na verdade, dois filmes: o do adolescente Peter Parker e o do homem com o fato e com a máscara. As declarações de Raimi são as seguintes: "Quis fazer um filme não sobre o Homem-Aranha mas sobre Peter Parker, porque foi isso que tornou tão eficaz e único o que Stan Lee e Steve Ditko e os outros autores da Marvel fizeram. Eles contaram a história de um miúdo de verdade que se transformou em super-herói".
Na história do miúdo de verdade reconhece-se, é verdade, Sam Raimi; na história do super-herói, Sam Raimi foi obrigado a vestir outras roupas. Nomeadamente, as de Tim Burton (mas como se Burton tivesse passado por ali e deixado, de forma até displicente, a roupa menos limpa da véspera). Raimi não consegue fazer descolar "Homem-Aranha" dos caminhos trilhados por "Batman", que é uma espécie de ruído permanente na nossa memória - as sequências em Time Square parecem reflexos das sequências da praça de Gotham City na noite de Natal em "Batman Regressa"; a ambiguidade diabólica de Willem Dafoe é devedora da de Christopher Walken no filme de Burton. E, claro, há a música de Danny Elfman...
Raimi também teve, é claro, de responder às expectativas de "filme de acção" (mas as cambalhotas digitais do super-herói não são excitantes...)
Mas Sam Raimi espreita em "Homem-Aranha", na história de um "loser", quando se põe ao lado do "outsider" - "o Homem-Aranha não tinha de ser 'cool', não tinha de ser perverso, não tinha de ser perigoso. Há tantas coisas que ele não precisava de ser. Quando a câmara se aproxima de Peter [Parker], a única coisa que ele tem de ser é uma boa pessoa. Uma pessoa que comete erros, mas alguém com quem nos podemos identificar", disse. Raimi espreita quando a cãmara se aproxima do órfão Peter Parker e da América mediana. A história, de amor e frustração, entre Tobey Maguire e Kirsten Dunst, a sexualidade que ainda não sabe afirmar, escapa às habituais aventuras adolescentes de Hollywood. É um canto "lo fi", no extremo oposto da ginástica "hi tech" do resto do filme. O beijo entre os dois, com o rosto dele semi-oculto pela máscara, é um dos momentos mais sensuais do cinema americano recente. É breve, mas aí Sam Raimi também espreita por trás da máscara e transborda o lirismo e o desvario que podemos chamar "raimiesques".