Missão: Impossível II

Circo Woo John Woo em Hollywood é melhor do que John Woo em Hong Kong? Não. Mas "Missão:Impossível 2", à beira do risível e da gargalhada, reitera o seu cinema como fragmentos de um circo volátil. Em Hollywood, chamam-lhe agora "the greatest action director in the world". Mas a obra americana de John Woo - para nos ficarmos pelas longas-metragens: "Hard Target", "Broken Arrow", "Face/Off" e, agora, "Missão: Impossível 2" - enfrenta um fantasma: alguns dos filmes realizados em Hong Kong, títulos como "Crime em Hong Kong" (1982), "The Killer" (89), "Bullet in the Head" (90) ou "Hard Boiled" (92), o último que fez na ex-colónia britânica antes de aceitar o convite de Hollywood. Foram esses filmes que levaram, por exemplo, Quentin Tarantino a dizer que Woo coreografava as cenas de acção como Miguel Ângelo pintava. O que é que aconteceu ao "pintor" depois da passagem para a América? Duas obras menores - "Hard Target" e "Broken Arrow" -, uma hipótese de reencontro ("Face/Off") e agora um "blockbuster". Permanece, portanto, uma sensação de esvaziamento: quanto mais Woo se torna conhecido do "mainstream" (até já com biografia feita pelos americanos), a sua obra recente parece não justificar a histeria que suscitou, entre alguns "happy few", nas últimas duas décadas. É o culto a uma incógnita? John who? O cineasta nascido em Cantão dirá que na América continua a ser "um pintor" mas sente a mão "amarrada a uma corda" e precisa de "lutar muito" porque há sempre "alguém a puxar para trás". Foi assim, referindo-se à sua inadequação aos maquinismos de uma indústria, Hollywood, que não conhecia, que explicou os falhanços. Ou seja, os tempos de Hong Kong, essa "estufa" onde, em tempo acelerado, coexistiam tradições ancestrais com uma sôfrega reformulação do que vinha do exterior, ficarão como momento irrepetível. A inocência ("candura", "primitivismo" descreveram também a obra do cineasta) já não é possível? Não, até porque quando chegou à América, John Woo encontrou por todo o lado sinais de John Woo. Fartou-se de pilhar os americanos, desde o musical dos anos 50 a Scorsese, passando por Sam Peckimpah - a operação de cinefilia produziu resultados desfocados, porque, culturalmente, Woo era exterior a esse universo, que consumiu durante uma infância miserável, mas foi essa distância que deu origem a algo de singular, como se fosse a invenção de um género, uma "primeira vez" para o "thriller". Depois, os americanos pilharam-no a ele (Tarantino nunca escondeu a dívida para com "The Killer" ou outros filmes de Hong Kong que "plagiou"). Fechou-se o círculo quando se deu o (re)encontro John Woo/Hollywood, e a redundância acompanhou a consagração - com alguma esquizofrenia, de um lado o "autor", de outro a "máquina" da indústria. Com toda a gente a "fazer à John Woo", como é que John Woo iria resistir à tentação de ser "the greatest action director in the world", ou seja, "fazer à John Woo" tal como os americanos o vêem? Sim, "Missão: Impossível 2" é um catálogo da obra do cineasta: os dois inimigos (Ethan Hunt/Tom Cruise e Sean Ambrose/Dougray Scott) como o espelho um do outro, porque a máscara do bem só existe como reflexo da máscara do mal, e vice-versa; uma mulher (Nyah Hall/Thandie Newton) entre eles, e entre o que pode ser obsessivo e fóbico nessa relação de homens; as pombas (a habitual artilharia religiosa de Woo), os bailados de balas e corpos no ar. Mas ao mesmo tempo que dá largas à redundância em "M:I2", Woo sabota-a com auto-ironia. Retira-lhe a obsessão, retira-lhe a convulsão (até o melodrama), como se tudo fosse apenas pretexto (o tal "macguffin" de Hitchcock, cineasta que também "anda" por aqui) para "pintar" o ecrã com sinais abstractos, à solta nos ecrãs, sem história e sem personagens para os sustentar. É isso que é divertido em "M:I2", e até arriscado. Parece haver um plano, estruturado pelo realizador com uma lucidez desassombrada, de lidar com as suas marcas como se fizesse uma operação de limpeza. Do "idílio" exótico inicial em Espanha, cheio de cortinas e flamenco, passando para o incontornável Hitchcock - "Ladrão de Casaca" (de que Woo já fizera um "pastiche" em "Once a Thief", outro momento irónico da sua carreira), "Difamação" e "Intriga Internacional -, depois para o próprio John Woo (a sequência com mais balas e fogo vem de "Hard Boiled"), mas como se tudo fosse um filme de 007, "M:I2" é uma sequela que só pode acreditar que cada um dos planos se autodestroem sempre dentro de momentos. Isso é insolente (afinal, esta foi uma megaprodução com um coreáceo processo de escrita de argumento e muito controlada pela vedeta controladora, Cruise), como insolente é o plano inicial, que coloca logo a fasquia nas alturas da incredulidade: Tom Cruise suspenso das montanhas do Utah. Inacreditável, no sentido em que é possível não acreditar, como se pode não acreditar, porque John Woo estica a sequência até ao delírio, na corrida de carros transformada em bailado de acasalamento entre Cruise e Thandie Newton. E aquele momento em que Ethan Hunt levanta uma tempestade de areia com o pé, arrancando uma pistola ao chão, virando-se teatralmente para o derradeiro combate com o inimigo? É John Woo a enebriar-se com o seu fogo-de-artifício pessoal. Está à beira do risível e da gargalhada, também, mas como tudo o resto é um fragmento de um circo volátil, o cinema. A insolência é a inocência que ainda sobrevive da infância, e pelos vistos isso ainda resta em John Woo. Mesmo que na América não consiga resistir a mostrar porque é que lhe chamam "the greatest action director in the world".

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Circo Woo John Woo em Hollywood é melhor do que John Woo em Hong Kong? Não. Mas "Missão:Impossível 2", à beira do risível e da gargalhada, reitera o seu cinema como fragmentos de um circo volátil. Em Hollywood, chamam-lhe agora "the greatest action director in the world". Mas a obra americana de John Woo - para nos ficarmos pelas longas-metragens: "Hard Target", "Broken Arrow", "Face/Off" e, agora, "Missão: Impossível 2" - enfrenta um fantasma: alguns dos filmes realizados em Hong Kong, títulos como "Crime em Hong Kong" (1982), "The Killer" (89), "Bullet in the Head" (90) ou "Hard Boiled" (92), o último que fez na ex-colónia britânica antes de aceitar o convite de Hollywood. Foram esses filmes que levaram, por exemplo, Quentin Tarantino a dizer que Woo coreografava as cenas de acção como Miguel Ângelo pintava. O que é que aconteceu ao "pintor" depois da passagem para a América? Duas obras menores - "Hard Target" e "Broken Arrow" -, uma hipótese de reencontro ("Face/Off") e agora um "blockbuster". Permanece, portanto, uma sensação de esvaziamento: quanto mais Woo se torna conhecido do "mainstream" (até já com biografia feita pelos americanos), a sua obra recente parece não justificar a histeria que suscitou, entre alguns "happy few", nas últimas duas décadas. É o culto a uma incógnita? John who? O cineasta nascido em Cantão dirá que na América continua a ser "um pintor" mas sente a mão "amarrada a uma corda" e precisa de "lutar muito" porque há sempre "alguém a puxar para trás". Foi assim, referindo-se à sua inadequação aos maquinismos de uma indústria, Hollywood, que não conhecia, que explicou os falhanços. Ou seja, os tempos de Hong Kong, essa "estufa" onde, em tempo acelerado, coexistiam tradições ancestrais com uma sôfrega reformulação do que vinha do exterior, ficarão como momento irrepetível. A inocência ("candura", "primitivismo" descreveram também a obra do cineasta) já não é possível? Não, até porque quando chegou à América, John Woo encontrou por todo o lado sinais de John Woo. Fartou-se de pilhar os americanos, desde o musical dos anos 50 a Scorsese, passando por Sam Peckimpah - a operação de cinefilia produziu resultados desfocados, porque, culturalmente, Woo era exterior a esse universo, que consumiu durante uma infância miserável, mas foi essa distância que deu origem a algo de singular, como se fosse a invenção de um género, uma "primeira vez" para o "thriller". Depois, os americanos pilharam-no a ele (Tarantino nunca escondeu a dívida para com "The Killer" ou outros filmes de Hong Kong que "plagiou"). Fechou-se o círculo quando se deu o (re)encontro John Woo/Hollywood, e a redundância acompanhou a consagração - com alguma esquizofrenia, de um lado o "autor", de outro a "máquina" da indústria. Com toda a gente a "fazer à John Woo", como é que John Woo iria resistir à tentação de ser "the greatest action director in the world", ou seja, "fazer à John Woo" tal como os americanos o vêem? Sim, "Missão: Impossível 2" é um catálogo da obra do cineasta: os dois inimigos (Ethan Hunt/Tom Cruise e Sean Ambrose/Dougray Scott) como o espelho um do outro, porque a máscara do bem só existe como reflexo da máscara do mal, e vice-versa; uma mulher (Nyah Hall/Thandie Newton) entre eles, e entre o que pode ser obsessivo e fóbico nessa relação de homens; as pombas (a habitual artilharia religiosa de Woo), os bailados de balas e corpos no ar. Mas ao mesmo tempo que dá largas à redundância em "M:I2", Woo sabota-a com auto-ironia. Retira-lhe a obsessão, retira-lhe a convulsão (até o melodrama), como se tudo fosse apenas pretexto (o tal "macguffin" de Hitchcock, cineasta que também "anda" por aqui) para "pintar" o ecrã com sinais abstractos, à solta nos ecrãs, sem história e sem personagens para os sustentar. É isso que é divertido em "M:I2", e até arriscado. Parece haver um plano, estruturado pelo realizador com uma lucidez desassombrada, de lidar com as suas marcas como se fizesse uma operação de limpeza. Do "idílio" exótico inicial em Espanha, cheio de cortinas e flamenco, passando para o incontornável Hitchcock - "Ladrão de Casaca" (de que Woo já fizera um "pastiche" em "Once a Thief", outro momento irónico da sua carreira), "Difamação" e "Intriga Internacional -, depois para o próprio John Woo (a sequência com mais balas e fogo vem de "Hard Boiled"), mas como se tudo fosse um filme de 007, "M:I2" é uma sequela que só pode acreditar que cada um dos planos se autodestroem sempre dentro de momentos. Isso é insolente (afinal, esta foi uma megaprodução com um coreáceo processo de escrita de argumento e muito controlada pela vedeta controladora, Cruise), como insolente é o plano inicial, que coloca logo a fasquia nas alturas da incredulidade: Tom Cruise suspenso das montanhas do Utah. Inacreditável, no sentido em que é possível não acreditar, como se pode não acreditar, porque John Woo estica a sequência até ao delírio, na corrida de carros transformada em bailado de acasalamento entre Cruise e Thandie Newton. E aquele momento em que Ethan Hunt levanta uma tempestade de areia com o pé, arrancando uma pistola ao chão, virando-se teatralmente para o derradeiro combate com o inimigo? É John Woo a enebriar-se com o seu fogo-de-artifício pessoal. Está à beira do risível e da gargalhada, também, mas como tudo o resto é um fragmento de um circo volátil, o cinema. A insolência é a inocência que ainda sobrevive da infância, e pelos vistos isso ainda resta em John Woo. Mesmo que na América não consiga resistir a mostrar porque é que lhe chamam "the greatest action director in the world".