Deuses e Monstros

A evocação dos últimos dias de James Whale, autor de clássicos de terror da década de 30, homossexual, e que nos anos 50 foi descoberto morto numa piscina. "Deuses e Monstros" inventa um jardineiro (Brendan Fraser) que chega a casa de Whale (Ian McKellen) para o desafio final da vida do cineasta envelhecido, e tenta, através de "flashes" oníricos e do humor, a teatralidade "camp" que estava nos filmes de Whale.

Quando o corpo do jornalista interpretado por William Holden era mostrado a flutuar, morto, numa piscina no princípio de "Sunset Boulevard"/ "O Crepúsculo dos Deuses" (Billy Wilder, 1950), o filme estava a utilizar um efeito especial sobre a realidade, já que os corpos mortos vão ao fundo e só flutuam à tona de água algum tempo depois da decomposição.

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A evocação dos últimos dias de James Whale, autor de clássicos de terror da década de 30, homossexual, e que nos anos 50 foi descoberto morto numa piscina. "Deuses e Monstros" inventa um jardineiro (Brendan Fraser) que chega a casa de Whale (Ian McKellen) para o desafio final da vida do cineasta envelhecido, e tenta, através de "flashes" oníricos e do humor, a teatralidade "camp" que estava nos filmes de Whale.

Quando o corpo do jornalista interpretado por William Holden era mostrado a flutuar, morto, numa piscina no princípio de "Sunset Boulevard"/ "O Crepúsculo dos Deuses" (Billy Wilder, 1950), o filme estava a utilizar um efeito especial sobre a realidade, já que os corpos mortos vão ao fundo e só flutuam à tona de água algum tempo depois da decomposição.

Quando o cineasta James Whale foi encontrado morto na piscina da sua casa, na exclusiva área de Pacific Palisades, em 1957, em circunstâncias nunca esclarecidas, a necrofilia cinematográfica começou também em trabalhos: a realidade estaria a servir de eco a "Sunset Boulevard", e Whale prestava-se a comparações com a personagem da estrela esquecida e enlouquecida desse

filme (Norma Desmond/Gloria Swanson), para além de a componente gótica dos acontecimentos rimar exemplarmente com os filmes do cineasta.

Sim, em 1957, depois de ter reinado durante a década de 30 nos estúdios da Universal, Whale estava provavelmente mais esquecido do que hoje. Poucos sabiam, nos anos dos ecrãs a cores e em scope, o nome do autor das anacrónicas imagens a preto e branco de "Frankenstein" (1931) e de "A Noiva de Frankenstein" (1935) que povoavam tardias sessões televisivas. Os monstros, finalmente, teriam levado o criador à auto-destruição, e no mito da Hollywood/Babilónia, Whale, homossexual, tinha de acabar o filme da sua vida com um crime passional sórdido.

Militância

Terá sido em nome da "realidade" e da "verdade" que o escritor Cristopher Bram, na novelização dos últimos dias de Whale a que deu o título de "Father of Frankenstein", fez questão de mandar o corpo do cineasta ao fundo e não o deixar a flutuar. A partir dessa obra, o realizador e argumentista Bill Condon, o produtor executivo Clive Barker e vários consultores como o

cineasta Curtis Harrington, abraçaram a "agenda" de culto a Whale e a militância anti-vitimização, num pequeno filme independente, "Gods and Monsters"/ "Deuses e Monstros", que se distinguiu o ano passado com a nomeação ao Óscar do intérprete principal, Ian McKellen, e com um prémio da Academia a Condon, como argumentista, pela adaptação do livro de Bram.

O autor, Condon e Barker (realizador de "filmes de terror") são

homossexuais - e também McKellen, cuja escolha para o filme constitui, a esse nível, todo um programa. Para eles, "Deuses e Monstros" quer afastar a ideia de que Whale subiu tão alto no início da década de 30 e começou a cair tão baixo dez anos depois devido à vida privada, à homossexualidade.

A verdade é que Whale, nos seus tempos de glória, nunca escondeu a sua relação com David Lewis (produtor de veículos para Garbo e Bette Davis, que estoirou profissionalmente devido ao flop de "Raintree County", com Clift e Taylor, e que desapareceria em 1987, também em circunstâncias estranhas). E, como vem resultando dos olhares de análise sobre a indústria das imagens na América (por exemplo, um livro do ano passado, "Open Secret", de David Ehrenstein), Hollywood, se é um lugar, é um lugar à parte. Mas é mais um espaço de fantasia, o que significa que perguntar "o que é ser gay na América?" não é o mesmo que perguntar "o que é ser gay em Hollywood?", onde actores, actrizes e realizadores "diferentes" (homossexuais), contribuíram para a identificação do imaginário "mainstream" de um país.

É, portanto, uma base de desmistificação que está no projecto de "Deuses e Monstros". Mas isso não significa que o que se vê (ou pelo menos a ambição que as imagens transportam) queira ser "realista" ou documentar uma reposição de factos.

Teatralidade "camp"

O James Whale que encontramos no início do filme está no fim da sua vida, numa solidão dourada com a pintura (amor inicial) que começa a ser invadida pelos efeitos debilitantes de uma trombose. Num torpor entre a realidade e o sonho, assaltado por "flashes" do passado - a infância miserável em Inglaterra, no seio do proletariado industrial; o pesadelo da I

Guerra Mundial, onde foi prisioneiro, ou a visão das noites hedonistas em Beverly Hills, com corpos masculinos à volta da piscina -, o filme da vida de James Whale vai ter um protagonista final: um jardineiro (Brendan Fraser).

Figura de ficção, é o estertor da sensualidade do cineasta (a personagem reunirá as várias ligações amorosas de Whale no final da vida) e, simultaneamente, o anúncio da morte. Numa sucessão de alucinações, que lhe trazem à memória imagens da rodagem de "A Noiva de Frankenstein", Whale vê na solidez do corpo desse jardineiro, no seu rosto quadrado (Brendan Fraser, de novo "inocente", alheio ao excesso do seu corpo), o monstro que criou nos filmes, e que regressou para destruir o criador.

A relação com a personagem não é, assim, tanto de sedução quanto de incitação ao assassínio, numa vertigem de provocação do cineasta para acabar com o seu processo de degradação (o suicídio acaba por ser o final escolhido) que é, também, irónica - é na companhia do jardineiro, também, que Whale quase sabota uma festa dada por George Cukor, outro "gay" de Hollywood mas, ao contrário de Whale, uma figura, dizem os biógrafos e espelha o filme, dúplice, que escondia a sua vida com máscaras.

"Deuses e Monstros" quer, assim, abrir-se ao desvario crepuscular, embora seja forçoso reconhecer que Condon não tem um talento que seja marcante para se transcender nessa ambição e transcender a ilustração. O "scope" lustroso próprio de um institucional "biopic" é rasgado por desfasados "flashes" expressionistas de sonhos ou de um outro tempo para marcar Whale como figura anacrónica. A evocação da I Guerra preenche, por um lado, a parte biográfica. Whale começou a desenhar cenários de teatro e a encenar peças enquanto esteve prisioneiro de guerra, e as marcas do conflito estiveram na origem de "The Road Back" (1937), um projecto pessoal que a Universal destruiu quando, pressionada pela Alemanha (que considerava negativa a forma como o seu protagonismo era visto no conflito e ameaçou um boicote europeu ao filme), contratou outro realizador para aligeirar o filme. O fracasso comercial da obra foi o princípio da queda de Whale, a partir de então condenado a projectos de

segunda categoria. Mas a I Guerra, ao atirar para trás o século XIX e abrir o século XX, explica também os monstros do cinema de Whale, o negrume, que o humor só tornava mais desesperante, com que se partiu para o novo mundo que se abria.

"Deuses e Monstros" quer colar-se à sensibilidade "camp" do realizador, à bizarra teatralidade que estava no seu cinema - fazer um filme sobre James Whale como se fosse um filme de James Whale. Tal como no caso do cadáver de William Holden a boiar na piscina em "Sunset Boulevard", o cinema (a cinefilia) quer fantasiar a realidade para teatralizar a morte.