Vale Abraão
Eis então "Vale Abraão" em versão integral. "Integral" por quê?, a versão que conhecíamos, a da estreia de 1993, estava truncada? De facto, estava: imposições do Festival de Cannes, que não permitia que um filme apresentado a concurso tivesse mais do que duas horas e cinquenta minutos, obrigaram Manoel de Oliveira a eliminar algumas cenas para que "Vale Abraão" correspondesse a essas exigências. Aliás, sem o sucesso pretendido, pois o realizador não conseguiu reduzir o tempo do filme para menos de três horas e dez minutos, acabando "Vale Abraão" por ser remetido, na sua passagem em Cannes, para a Quinzena dos Realizadores. Seja como for foi essa versão, com cerca de 13 minutos a menos do que a inicialmente prevista por Oliveira, que fez carreira comercial nas salas de cinema. Mas como para Oliveira, ao contrário do que sucede com a maior parte dos realizadores, a obra passada não é obra morta e há sempre qualquer coisa onde ainda se pode mexer (até o "Douro, Faina Fluvial" é, neste caso, exemplo válido), esses 13 minutos acabaram por ser reintegrados no filme ? e em tempo de homenagem nacional a Manoel de Oliveira "Vale Abraão" aí está de novo disponível, decida quem quiser se outra vez ou se, finalmente, pela primeira vez. A bem dizer, e isto é um elogio, "Vale Abraão" continua a ser o mesmo filme ? tão completo e tão harmónico como aquele que os espectadores conheceram há cinco anos. Não significa isto que as cenas agora incluidas sejam expúrias ou dispensáveis, longe disso: parafraseando as explicações dadas pelo próprio Oliveira, elas são realmente importantes para "uma melhor definição das personagens" (em especial Carlos Paiva, a personagem de Luís Miguel Cintra, agora tornada um pouco mais complexa pela introdução da personagem da sua primeira mulher) e do ambiente social que as rodeia ? no que a isto diz respeito, o filme está inegavelmente mais rico. Mas, ou pela justeza da sensibilidade de Oliveira (que em 1993, à evidência, cortou apenas aquilo que podia cortar sem entrar em desfigurações) ou pelo estado de graça em que "Vale Abraão" se banha de uma ponta a outra, nada do que aparecia como essencial se alterou. E repete-se, continua a ser o mesmo filme, tão esplendoroso como sempre foi ? palavras que nem por isso se aplicam a todos os "director?s cuts". Recapitule-se, então, um pouco do que já sabíamos sobre "Vale Abraão", o filme onde, depois de "Francisca" e da peça teatral "De Profundis", Manoel de Oliveira voltou a colaborar com Agustina Bessa Luís. Colaboração, de resto, um tanto ou quanto inusitada: Oliveira não se limitou a adaptar um romance da escritora mas, muito mais do que isso, pediu-lhe que o escrevesse ? dando um mote, uma revisitação da "Madame Bovary" de Flaubert passada no Portugal contemporâneo, mais propriamente na região do Douro. No entanto, não é só o "bovaryismo" ("Vale Abraão" nunca pretendeu ser de forma alguma um "remake") que Oliveira puxa para centro do seu filme. "Vale Abraão" é essencialmente a crónica do fim de um tempo e do desabar de um mundo, de que toda a região do vale do Douro em que o filme se desenrola acaba por ser, fundamentalmente, um símbolo revelador. Oliveira não tem um olhar doce sobre as transformações sociais, e "Vale Abraão" traduz, de forma tão poética como amarga, o esvaziamento de sentido de um certo tipo de rituais, de estratos e de relacionamentos sociais. Alguma coisa se perdeu, diz Oliveira, e é por isso que algures no filme se diz também, a propósito de Ema Paiva (Leonor Silveira), que ela é "uma princesa que nasceu tarde demais", num reino onde já não cabe e que já não a merece. E o drama de Ema Paiva, presa entre a mesquinhez do marido e a futilidade do ambiente que a rodeia (lapidarmente encarnadas pelas personagens de Diogo Dória e António Reis), é que tem a exacta e dolorosa consciência disso mesmo. Entre uma coisa e outra, está condenada a ser, como ela própria diz, "um estado de alma em balouço". Leonor Silveira, sem minimamente beliscar tudo o que já fez e certamente fará, tem em "Vale Abraão" aquele que é o papel da sua vida - convocando a cada olhar e a cada gesto as consequências de uma reunião torturada do espírito e do corpo. Em volta dela, concebeu Oliveira algumas das mais belas sequências da sua obra. Escolhamos duas: a caminhada de vela na mão pelos corredores escuros até ao quarto do marido; o espantoso "travelling" por baixo do laranjal, antecedendo o derradeiro sacrifício. Nunca estivemos tão perto de dizer que o cinema era, apenas e só, pintura em movimento.
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Eis então "Vale Abraão" em versão integral. "Integral" por quê?, a versão que conhecíamos, a da estreia de 1993, estava truncada? De facto, estava: imposições do Festival de Cannes, que não permitia que um filme apresentado a concurso tivesse mais do que duas horas e cinquenta minutos, obrigaram Manoel de Oliveira a eliminar algumas cenas para que "Vale Abraão" correspondesse a essas exigências. Aliás, sem o sucesso pretendido, pois o realizador não conseguiu reduzir o tempo do filme para menos de três horas e dez minutos, acabando "Vale Abraão" por ser remetido, na sua passagem em Cannes, para a Quinzena dos Realizadores. Seja como for foi essa versão, com cerca de 13 minutos a menos do que a inicialmente prevista por Oliveira, que fez carreira comercial nas salas de cinema. Mas como para Oliveira, ao contrário do que sucede com a maior parte dos realizadores, a obra passada não é obra morta e há sempre qualquer coisa onde ainda se pode mexer (até o "Douro, Faina Fluvial" é, neste caso, exemplo válido), esses 13 minutos acabaram por ser reintegrados no filme ? e em tempo de homenagem nacional a Manoel de Oliveira "Vale Abraão" aí está de novo disponível, decida quem quiser se outra vez ou se, finalmente, pela primeira vez. A bem dizer, e isto é um elogio, "Vale Abraão" continua a ser o mesmo filme ? tão completo e tão harmónico como aquele que os espectadores conheceram há cinco anos. Não significa isto que as cenas agora incluidas sejam expúrias ou dispensáveis, longe disso: parafraseando as explicações dadas pelo próprio Oliveira, elas são realmente importantes para "uma melhor definição das personagens" (em especial Carlos Paiva, a personagem de Luís Miguel Cintra, agora tornada um pouco mais complexa pela introdução da personagem da sua primeira mulher) e do ambiente social que as rodeia ? no que a isto diz respeito, o filme está inegavelmente mais rico. Mas, ou pela justeza da sensibilidade de Oliveira (que em 1993, à evidência, cortou apenas aquilo que podia cortar sem entrar em desfigurações) ou pelo estado de graça em que "Vale Abraão" se banha de uma ponta a outra, nada do que aparecia como essencial se alterou. E repete-se, continua a ser o mesmo filme, tão esplendoroso como sempre foi ? palavras que nem por isso se aplicam a todos os "director?s cuts". Recapitule-se, então, um pouco do que já sabíamos sobre "Vale Abraão", o filme onde, depois de "Francisca" e da peça teatral "De Profundis", Manoel de Oliveira voltou a colaborar com Agustina Bessa Luís. Colaboração, de resto, um tanto ou quanto inusitada: Oliveira não se limitou a adaptar um romance da escritora mas, muito mais do que isso, pediu-lhe que o escrevesse ? dando um mote, uma revisitação da "Madame Bovary" de Flaubert passada no Portugal contemporâneo, mais propriamente na região do Douro. No entanto, não é só o "bovaryismo" ("Vale Abraão" nunca pretendeu ser de forma alguma um "remake") que Oliveira puxa para centro do seu filme. "Vale Abraão" é essencialmente a crónica do fim de um tempo e do desabar de um mundo, de que toda a região do vale do Douro em que o filme se desenrola acaba por ser, fundamentalmente, um símbolo revelador. Oliveira não tem um olhar doce sobre as transformações sociais, e "Vale Abraão" traduz, de forma tão poética como amarga, o esvaziamento de sentido de um certo tipo de rituais, de estratos e de relacionamentos sociais. Alguma coisa se perdeu, diz Oliveira, e é por isso que algures no filme se diz também, a propósito de Ema Paiva (Leonor Silveira), que ela é "uma princesa que nasceu tarde demais", num reino onde já não cabe e que já não a merece. E o drama de Ema Paiva, presa entre a mesquinhez do marido e a futilidade do ambiente que a rodeia (lapidarmente encarnadas pelas personagens de Diogo Dória e António Reis), é que tem a exacta e dolorosa consciência disso mesmo. Entre uma coisa e outra, está condenada a ser, como ela própria diz, "um estado de alma em balouço". Leonor Silveira, sem minimamente beliscar tudo o que já fez e certamente fará, tem em "Vale Abraão" aquele que é o papel da sua vida - convocando a cada olhar e a cada gesto as consequências de uma reunião torturada do espírito e do corpo. Em volta dela, concebeu Oliveira algumas das mais belas sequências da sua obra. Escolhamos duas: a caminhada de vela na mão pelos corredores escuros até ao quarto do marido; o espantoso "travelling" por baixo do laranjal, antecedendo o derradeiro sacrifício. Nunca estivemos tão perto de dizer que o cinema era, apenas e só, pintura em movimento.