Cláudia Teixeira, Joaninha em A Comédia de Deus: A bela e a fera
Ninguém tinha respondido ao anúncio que a produção de A Comédia de Deus pusera na imprensa: pedia-se uma jovem, havia cenas de nudez a representar.
Este texto foi publicado no PÚBLICO Magazine a 21 de Janeiro de 1996
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Este texto foi publicado no PÚBLICO Magazine a 21 de Janeiro de 1996
Quando o realizador João César Monteiro e o seu assistente, Manuel João Águas, a encontraram no jardim do Príncipe Real a tomar café com amigas — explicaram-lhe "por alto" que ela era a rapariga que procuravam para A Comédia de Deus —, Cláudia Teixeira, 19 anos, ficou "tão desarmada, tão surpresa" que nem lhe passou pela cabeça dizer "não".
Quando se vê os 40 minutos dela no filme — um sátiro, João de Deus, atrai-a para uma cerimónia solene, fechando esses momentos a cúpula majestosa de A Comédia de Deus —, percebe-se que a inconsciência e a exterioridade de Cláudia Teixeira face ao cinema (ela nem ligava Recordações da Casa Amarela, que tinha visto, a João César Monteiro) desempenharam algum papel. "Fiquei tão admirada que não pensei nada. Não tive hipótese - apesar de sentir medo: `Será que serei capaz de fazer?'" Ninguém tinha respondido ao anúncio que a produção de A Comédia de Deus pusera na imprensa: pedia-se uma jovem, havia cenas de nudez a representar.
Todas as noites, durante uma semana, Cláudia — melhor, a sua personagem, a colegial Joaninha — submeteu-se à coreografia diabólica de um geladeiro que desenvolve até ao vértice um périplo erótico. "A minha mãe acompanhou todo o processo desde o início, por isso não houve nenhum tipo de receio. Esteve sempre a par do que se passava. Perguntei-lhe o que achava de eu entrar, não me apetecia estar nisto sozinha. Ela disse-me que eu é que devia decidir. Acho que ainda hoje não consigo dizer o que me fez decidir."
Foi a concentração nos movimentos, a redução da sua presença à concretização de actos e de gestos — o trabalho —, que, diz Cláudia, a defenderam em sequências tão arriscadas e, imagina-se, problemáticas como a da cornucópia de ovos onde João de Deus obriga Joaninha a sentar-se. É esta cena, ou outra na banheira em que é lavada pelo geladeiro, que invariavelmente desperta as mais fortes reacções em quem vê o filme.
"Estava tudo escarrapachado no guião, fiz pouco mais do que o que estava escrito. Tinha que estar concentrada nos movimentos, eram coisas tão minuciosas que não valia a pena passar disso. Bastava o que estava ali. A cena, a forma como estava escrita e filmada, valia por si só. Senti essa energia perigosa de João de Deus mas isso não deveria transparecer na personagem. Não era para mostrar receio, Joaninha estava ali por inocência."
Se, para Cláudia Teixeira, a sequência da cornucópia foi das mais incomodativas de filmar — "Foi muito forte psicologicamente, senti-me afectada" -, o mais problemático não teve necessariamente a ver com a exposição física. "A cena mais difícil de filmar foi logo no primeiro dia: a minha entrada na geladaria. Era só olhar, fazer um gesto. Não me dava jeito, parecia ridículo."
Ao que se sabe, foi por pouco que ela não recebeu o prémio da melhor actriz no Festival de Dunquerque — onde César Monteiro/Max Monteiro foi considerado o melhor actor e o filme recebeu o Grande Prémio e o Prémio do Júri Jovem, isto após o Prémio Especial do Júri de Veneza. Mas a ela isto pouco diz. "Não consigo perceber...". "Gostei muito da experiência mas não me fez pensar em seguir uma carreira. Há outras coisas que quero fazer, tenho outros objectivos. Estou no primeiro ano de Psicologia e estudo piano no Conservatório. O cinema lembra-me o docezinho que se abana, que dá a vontade de ir a correr atrás e largar tudo o resto; mas depois come-se e não resta nada. No piano, uma audição ou ter uma coisa bem tocada implica muito mais trabalho, sabe mais a vitória."