"O cinema não tem consolo", diz João César Monteiro em entrevista ao PÚBLICO em 1996

Após algum tempo em hibernação, João de Deus, o "alter ego" de João César Monteiro, regressa como geladeiro em A Comédia de Deus. Depois de um périplo erótico, acabará por ser expulso do Paraíso do Gelado. E se esta coreografia de rituais encantatórios sobre o vazio fosse a confissão da dolorosa e masoquista relação de um realizador com o cinema? "O cinema não tem consolo", diz.

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João César Monteiro Daniel Rocha/PÚBLICO

Esta entrevista foi publicada no PÚBLICO a 19 de Janeiro de 1996, data da estreia do filme A Comédia de Deus de João César Monteiro.

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Esta entrevista foi publicada no PÚBLICO a 19 de Janeiro de 1996, data da estreia do filme A Comédia de Deus de João César Monteiro.

Um geladeiro, João de Deus, é expulso do Paraíso do Gelado pela chegada do império do ice cream. Já tinha sido varrido pelo pai da adolescente a quem dedicou um cerimonial — cúpula de uma infantilizada etapa erótica, que passa pela colecção de pêlos púbicos e por uma cornucópia de ovos que para ele é uma vertigem. O fim é a desolação de uma casa ocupada pelos pombos.

A Comédia de Deus é uma obra para a qual se convocaram terramotos. É apenas metade do monumento que o realizador queria concretizar - o resto foi adiado para um anunciado "Joana de Deus". Cinema, aquilo que resta do desastre.

E se fosse a confissão de uma dolorosa e masoquista relação? Um cineasta, João César Monteiro, coreografa rituais encantatórios sobre o vazio; filma-se nesse percurso solitário e sem saída - à beira da expulsão - que é a rodagem de um filme. "Não há lugar possível", podem dizer João César Monteiro/João de Deus/Max Monteiro, os rostos da máscara. Estreia-se hoje.

"Não é qualquer um que está apto a franquear as portas do paraíso." Isto é no contexto de uma geladaria e da personagem João de Deus. Se substituirmos por "cinema" e por "João César Monteiro", A Comédia de Deus é de uma solidão cósmica. O cinema é uma viagem sem regresso, abrem-se portas e fica-se condenado a continuar em frente?
Estava a pensar num filme, 2001 Odisseia no Espaço, e num soneto de Antero de Quental: vai abrindo portas, portas, portas e, de cada vez que abre, à espera de encontrar qualquer coisa, vai-se descobrindo... salvo erro, isto é de memória: "Dentro encontro só, cheio de dor, silêncio, escuridão e nada mais." Quanto mais se procura menos se encontra. E chegamos ao terror da solidão de uma coisa que não tem fim. E se calhar esta viagem também tem um lado circular: pensa-se que se avança, mas descobre-se que o fim é igual à origem.

Recordações da Casa Amarela tinha como subtítulo Uma comédia lusitana; A Comédia de Deus não está ancorado, eleva-se em espiral até uma terra de ninguém. No fim, não há lugar para João de Deus. O cinema é uma solidão sem consolo?
Resposta seca e literal: o cinema não tem consolo. Porque é película, e a película nem sequer é tão saborosa como um gelado. É uma matéria físico-química, mais salgada do lado da emulsão porque tem ácidos — isto quando se põe a língua. Não sei se dá saúde. Mas não traz felicidade. E ainda por cima, nesta idade, já não excita muito o egozinho. O que é que eu gostava de ser? Gostava de não ser cineasta, não ser artista, ser gente simples, passando despercebidamente pelo grande magma social. Isto pressupõe uma certa inveja: não é a inveja de não ser um grande cineasta como o Murnau, é a inveja de não ser afável e simpático como o marido da minha porteira.

Porque é que não é?
Não consigo ser. Porque mexo em coisas que têm que ver com a criação, com a arte.

E têm que ver com a "criação João César Monteiro"... Além de João de Deus, introduz agora Max Monteiro, a sua criação como actor. Numa cena põe uma máscara.
Uma máscara carnavalesca e de morte. Mas foi ocasional. O acaso é uma visitação, provoca-se. E provoca-se de um modo simples: é deixar que as coisas visitem o filme. A máscara era de um miúdo que ia a passar, a filmagem coincidiu com o Carnaval. Há uma coisa mais surpreendente, o plano final: os dois pombos que vêm pousar no rebordo. Provocou-se a invasão, abriu-se as gaiolas, soltou-se os pombos. Mas não houve indicações para que naquela altura precisa os dois pousassem. Ainda estávamos lá hoje se dependesse da mise en scène.

Mas a relação César Monteiro/João de Deus/Max Monteiro é de mise en scène. Multiplicam-se as máscaras, e é sempre a mesma. É como o filme: uma série de rituais sobre um vazio. É um jogo que olha para o abismo. Porque é que criou Max Monteiro?
Tem que ver com o meu trabalho, que vou fazendo independentemente de haver filme ou não. É um trabalho infatigável, de todos os dias. O filme é apenas um momento privilegiado em que se reúnem meios para fixar um trabalho que é anterior.

Que trabalho é?
É um exercício, que pode ser para um filme. E começa desgraçadamente a haver testemunhos disso. Há uns tempos a Margarida [Gil, mulher] dizia: "Já estás a trabalhar no próximo filme." Havia indícios no meu comportamento que apontavam para a fixação desse modesto exercício. Não tem nada de extravagante.

A prova do desastre

Desta vez, ao colocar João de Deus em órbita...
Começo a estar farto dessa criatura...

 ... parece tê-lo feito com consciência de que o que faz não leva a sítio nenhum. Fala em gelados, perfumes. "Que pena isto não ser pecado", alguém diz. Como se concilia esta concepção venenosa de cinema com compromissos, engrenagens, co-produções?
Fui atirado para a co-produção de um modo ingénuo. Não sei quais as regras do jogo. Ter-me-á sido explicado, entendi-as mal. Mas suponho que nem eu nem o produtor [Joaquim Pinto] sabíamos bem o que estava a ser jogado. De facto, uma co-produção implica compromissos.

Correu mal: A Comédia de Deus é só uma parte do filme que queria fazer; uma fase inicial da rodagem foi abortada — entre outras, questões que tinham que ver com a utilização do Cinemascope —, o resto adiado. A ideia de meter o pé dentro de um sistema de produção — um percurso em direcção ao centro, disse — falhou?
Não sou um cineasta co-nacional, mas tenho afinidades com o cinema francês. E houve uma coisa muito grave para o cinema europeu, que foi a morte do [François] Truffaut. O Truffaut, de facto, era o cineasta do centro.

É impossível haver filme mais "descentrado" do que o seu. Não conseguiu ocupar o centro?
Não há condições para isso. Isto é um país periférico, tem um cinema extremamente periférico e das duas uma: ou é um cinema - dito comercial - condenado a vegetar num mercado escasso, que não se consegue exportar; ou é um cinema confinado a circuitos mais ou menos prestigiosos: festivais, pequenas carreiras de prestígio. Acho que não leva a lado nenhum.

O filme também é sobre isso.
O filme é sobre isso. O cineasta vivo de quem gosto mais é um tal Jean-Marie Straub. Faz mil espectadores e fica todo contente.

Qual é a saída? A desolação de uma casa vazia com pombos, como no final de A Comédia de Deus?
É preciso ver o filme todo [a segunda parte intitula-se "Joana de Deus"] para que o sentido se feche. Essa conversa é prematura. Para já, acaba com a personagem expulsa da imagem: primeiro da geladaria e depois de uma casa que fica habitada por bestiolas imundas. Não há lugar possível...

 A impossibilidade faz de A Comédia de Deus um filme a pairar...
O filme não estava preparado, mas havia compromissos, bancários e não só. A partir de uma certa altura, é uma engrenagem que se põe em marcha e é difícil travá-la. Sabia que estava cheio de brechas. Não era só o Cinemascope, eram os décors, o guarda-roupa, todos os sectores estavam à deriva e eu não tinha qualquer controle. Mas tinha que rebentar. É um velho truque: quando há uma coisa que se põe em marcha, é preciso que a explosão se verifique. Tem de haver a prova do desastre, senão não há desastre.

 Precisa do desastre?
Digamos que a adversidade me é propícia, mas não fui eu que convoquei os terramotos. Prefiro levar isto à conta da ingenuidade mútua, minha e do Joaquim. Porque, quem é o Joaquim? É um jovem produtor que fez um filme chamado Uma Pedra no Bolso, com poucos meios e que era muito inteligente na forma como se adequava a eles. Do segundo filme, Onde Bate o Sol, não gosto e disse-lhe isso. Ele disse-me: "Foi aí que me comecei a meter nas baralhadas."

De facto, se calhar isto é uma história de baralhadas entre passarinhos e passarões. Se calhar isto está muito mal no que toca ao cinema europeu. Suponho que os grandes produtores acabaram. Há excepções. Há a Martine [Marignac, co-produtora do filme], que funciona bem com o Jacques Rivette, que é um tipo que conhece aquilo de cor e salteado e está muito escudado. O Godard isolou-se. Depois há uns tontos e uns marginais. Estes não se inserem na indústria, são os pobres: o Garrel. O grande herói dessa gente toda quem é? O [Paulo] Branco. O que é que ele tem que os outros não têm? Um certo gosto pelo cinema.

O filme é a aprendizagem do desastre?
É. O que o filme tem é fruto das circunstâncias.

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A Comédia de Deus dr

Quando diz a um sorveteiro francês: "Esperava outra pessoa", estava de facto à espera do actor Jean-Pierre Léaud, que não veio.
O desastre, o que é? É a consciência de uma actividade dolorosa, que deixa cicatrizes, feridas. O que é que eu tinha como instrumento de trabalho? Um guião. E o guião tinha cenas com diálogos facilmente minutáveis — correspondem ao tempo que têm no filme —, mas depois havia cenas com três linhas. Para a segunda parte, há também três ou quatro cenas em que há um ponto de partida e depois é ver até onde os actores podem ir.

João de Deus é varrido no fim. O que é que isto diz do seu trabalho de cineasta? É masoquismo?
Deve haver uma componente, com certeza.

Precisa da ferida?
A segunda parte abre com uma ferida, numa lata de sardinhas. Aquela folha de Flandres não perdoa... Preciso de um certo clima, mas não é um clima contra tudo e contra todos. Preciso de sentir que a papa não está toda feita. É preciso criar as condições para receber as coisas. E o grande desastre é não fazer filmes desastrados.

Mas também é verdade que o cinema está eivado de pessoas que não têm nada que ver com o cinema. Não é que seja difícil, é impossível estabelecer uma relação de trabalho. Não há nada para dizer.

O ovo da galinha

A cúpula deste filme é uma cerimónia, de mais de 40 minutos, que João de Deus prepara para Joaninha (Cláudia Teixeira). Supõe-se que foi problemático, a intérprete nunca tinha feito cinema.
Houve duas pessoas que nunca tinham feito aquela cena, os dois intérpretes — tirando alguns ensaios mecânicos. Não houve direcção de actores. Se houve, quem é que dirigiu quem?

Como se chegou então àquela mútua exposição?
Tenho dificuldade em responder. E vou ter dificuldade em ir ao cinema e ver-nos naquelas figuras.

Também havia poucas linhas no guião?
Não, era daqueles casos em que havia diálogos escritos que foram escrupulosamente ditos. A Cláudia passou um mês inteiro a ensaiar com uma instrutora. Era preciso ser muito rigoroso. Correu sem incidentes. Foi tudo conversado, com muita serenidade.

Há a cornucópia, há a banheira... Como faz? Evidencia o incómodo ou faz de conta que ele não existe e segue em frente?
Partiu-se do princípio de que eram cenas a discutir pela própria. Ela leu o guião — com a mãe — e entendeu aquilo de modo não dramático e não especialmente complicado para ela. A única preocupação que tinha em relação aos ovos era parti-los todos, quando o resultado da cena era sobrar um. Não havia problema, cozia-se um ovo. A única coisa inventada foi a minha entrada de cabeça. Só eu sabia. É daquelas surpresas que guardo para mim.

Como é que escolheu a Cláudia?
Pus um anúncio no Correio da Manhã que no PÚBLICO foi considerado obsceno — o anúncio pedia uma menina para entrar num filme com cenas de nu. Achei ridículo, tenho lido coisas mais inquietantes. Não houve respostas, e em desespero fomos tomar uma bica ao Príncipe Real. A Cláudia estava lá com umas amigas. Mostrou-se os filmes que eu tinha feito e depois o argumento.

Devo dizer que a Cláudia gostou de fazer o filme, embora não goste muito de se ver. A única cena em que gosta é a da retrete.

Há uma princesa que ficou adiada para a segunda parte do filme, esteve para ser feita por Fabienne Babe, que ainda filmou cenas. O que é que lhe aconteceu?
Como sou muito volúvel, agora estou a namorar outra princesa: Sandrine Bonnaire.

Ela já leu o argumento?
Está a acabar de ler.

Sente que vai ter dificuldades em filmá-lo — tal como diz que é difícil experimentar aromas nos gelados por causa do ice cream?
Suponho que não vou ter mais dificuldades do que os meus colegas. Porque se calhar se vai abrir um novo ciclo no cinema português. Há cineastas que estão a chegar ao fim. Atenção, não estou aqui na qualidade de usurpador.

Refere-se a Manoel de Oliveira...
Com certeza. O Manoel era — e é — uma fasquia muito alta e não é fácil.

Foi-lhe criado um casulo que lhe permitiu responder anualmente. No seu caso, o ritmo é errático...
Estamos a esquecer uma peça importante: o senhor Paulo Branco [produtor].

Com Joaquim Pinto, quis também construir um nicho...
A estratégia era estabelecer o mesmo tipo de relação que o Oliveira tinha com o Branco, só que — e não falo do ponto de vista afectivo, porque é claro que somos amigos — o Joaquim não tem pedalada para isso. O Manoel e o Branco estão bem um para outro. É evidente que o ritmo foi favorecido pelo Estado. Agora, "chacun son style".

Pensa que isso está a chegar ao fim?
O Manoel tem quase 90 anos. Isto não tem nada que ver com a qualidade, mas não tem a energia que tinha há dez anos. Já disse ao Paulo: "Não te esqueças que sou a nova galinha dos ovos de ouro." Que garantias é que dou? Sou mais aberto, num certo sentido.

Sente-se isolado?
Um bocado. O cinema é uma coisa de solitários. Ninguém pode fazer por mim e eu não posso fazer o cinema dos outros. Qual é o gozo de um filme? Para ser franco, não dá nenhum prazer. A crítica dizer bem? Hum...