A rua é muito mais do que um canal onde nos podemos mover

É no equilíbrio da tríade mobilidade, sociabilidade e biodiversidade que temos de assentar o planeamento das nossas ruas, defendem os urbanistas Bruno Soares e Daniel Casas Valle.

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O vazio gerado pela covid-19 mostra o quanto o espaço público está entregue ao transporte motorizado Nelson Garrido

O que têm em comum as expressões liveable streets (ruas habitáveis), healthy streets (ruas saudáveis), ou as ruas para brincar, do movimento Cidades das Crianças, ancorado na obra do pedagogo italiano Francesco Tonucci? Desde logo, o facto de em nenhuma delas se encontrar a palavra transportes ou sequer uma outra, de sentido mais amplo: mobilidade. É verdade que, num espaço urbano, a rua é um canal ligando diversos pontos (e organizando o espaço público e o privado), mas foi a visão preferencial dela como uma infra-estrutura de transportes que nos trouxe a uma situação em que, para muitos de nós, as ruas se tornaram lugares inabitáveis, insalubres, onde nem largamos os nossos filhos da mão, e muito menos os deixamos brincar.

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O que têm em comum as expressões liveable streets (ruas habitáveis), healthy streets (ruas saudáveis), ou as ruas para brincar, do movimento Cidades das Crianças, ancorado na obra do pedagogo italiano Francesco Tonucci? Desde logo, o facto de em nenhuma delas se encontrar a palavra transportes ou sequer uma outra, de sentido mais amplo: mobilidade. É verdade que, num espaço urbano, a rua é um canal ligando diversos pontos (e organizando o espaço público e o privado), mas foi a visão preferencial dela como uma infra-estrutura de transportes que nos trouxe a uma situação em que, para muitos de nós, as ruas se tornaram lugares inabitáveis, insalubres, onde nem largamos os nossos filhos da mão, e muito menos os deixamos brincar.

Brincar? A rua tem sido tratada como um sítio de coisas sérias. À luz da produtividade que se tornou a medida de todas as coisas, o seu valor é expresso pela sua eficiência para o funcionamento de uma cidade. E essa mede-se, por exemplo, contabilizando quantos veículos se consegue estacionar ou fazer passar num dado espaço canal, num dado intervalo de tempo. A questão, lembra-nos o urbanista Daniel Casas Valle, é que já se percebeu, há muito, que há outros assuntos sérios que têm de entrar na equação, e a reacção à perspectiva funcionalista gerou um movimento de humanização do espaço público (e da rua, como sua expressão mais frequente) que, concede este neerlandês a trabalhar no Porto, está a entrar na agenda de muitos municípios portugueses.

Esquecemos o básico?

A rua tem uma função de mobilidade sim, e, tirando o metro subterrâneo, é o canal por excelência dos meios de transporte. O “mais básico, vital e talvez por isso mais esquecido”, nota a partir da Área Metropolitana de Lisboa outro arquitecto e urbanista, Luís Bruno Soares, é o andar a pé. É nesta condição que melhor se exprime outra função da rua, a de espaço de sociabilidade, enquanto ponto de encontro, lugar de estar, de fazer compras, de brincar, de prolongamento do espaço privado, nalguns casos. E é enquanto peões, também, que mais beneficiamos da função ambiental da rua, que reganhou importância nestes tempos de crise climática, enquanto canal de suporte da designada infra-estrutura verde, que ameniza os extremos de calor, por exemplo, e da infra-estrutura azul, a da água, que nos ajuda a lidar com os extremos de pluviosidade.

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Daniel Rocha

Cada uma destas funções – e outras que cabem dentro delas – pede, hoje, o seu lugar na rua, que Milão, por exemplo, está a tratar, nesta perspectiva holística, como “um bem comum”. Haverá aquelas ruas em que, pela sua relação com outras escalas territoriais maiores, a função de mobilidade é mais exigente, e nas quais é dado mais espaço para o transporte de pessoas e bens, que está em mutação, graças à evolução tecnológica, mas isso não deve pôr em causa as restantes prioridades. Como num tripé, se uma das pernas estiver desalinhada das restantes, o conjunto fica desequilibrado. E alguém sofrerá com isso: normalmente, os mais frágeis que, por um motivo ou por outro, não têm escolha.

Ruas habitáveis

Na senda de Lewis Munford [A Cultura das Cidades, de 1938], Jane Jacobs [A Morte e a Vida de Grandes Cidades Americanas, 1961] e outros, Donald Appleyard investigou, já nos anos 70, o efeito da mono-funcionalidade em artérias entupidas pelo trânsito em São Francisco. Verificou um decréscimo abrupto de relações sociais, de ligações e encontros, entre vizinhos de um lado e do outro de uma rua. Na senda do pai, Bruce Appleyard celebrou os 50 anos da sua obra mais conhecida, Liveable Streets, publicando, em 2021, Liveable Streets 2.0, livro no qual retoma a análise às condições necessárias para construirmos ruas habitáveis. O livro está recheado de estudos de vários autores, e soluções de desenho, mas as verdadeiras ferramentas de que faz uso resumem-se em poucas palavras: “ética, empatia, equidade e justiça” nas ruas e comunidades urbanas.

A motorização da mobilidade ao longo do século XX mudou as cidades, explica Bruno Soares. Mexeu-se nas ruas, transfiguradas, muitas, em estradas, para que os automóveis pudessem circular com mais “fluidez”, criou-se estacionamento, e deixou-se algum espaço para andar a pé. A proporção é mais ou menos a que Casas Valle vê da janela de casa, no centro do Porto, ou aquela com que Bruno Soares trabalha na Amadora, na revisão do PDM: em dez metros de largura, sete e meio estão afectos ao automóvel, esteja ele a andar ou parado. Nos extremos, há duas faixas estreitas para peões, que as partilham com postes de iluminação, caixas de infra-estruturas eléctricas ou de telecomunicações e, em muitos casos, com as caldeiras das árvores. Quando estas existem.

A resiliência anda a pé

Ainda assim, mesmo nas áreas metropolitanas portuguesas, onde três em cada cinco deslocações se fazem de carro, não é despiciendo o rácio de pessoas a andar a pé. Estas representam uma em cada quatro deslocações, no Porto, e um pouco mais em Lisboa. Na Amadora até são maioritárias. Poder recorrer ao nosso próprio corpo, sem uma fonte externa de energia, é sinal de uma resiliência que faz falta, por exemplo, numa crise como a actual. Contudo, caminhar tanto pode ser visto como um acto de coragem, pelo risco que comporta, num país com elevados índices de sinistralidade com peões; como uma marca de “subdesenvolvimento”, numa sociedade em que possuir um automóvel ainda é um elemento de estatuto social. Quando devia ser, apenas, um gesto racional, em curtas distâncias, nota Casas Valle.

Mas foi de carro que o país encolheu, e as cidades se aproximaram umas das outras. Segundo dados da Pordata, em duas décadas, o continente perdeu 600 km de ferrovias e ganhou 2800 km auto-estradas. A par disto, o número de automóveis ligeiros triplicou, de 185 para 530 por mil habitantes, entre 1990 e 2019. O automóvel ganhou a cidade, também. Por cada veículo existem dois lugares de estacionamento, aquele onde o deixamos, perto de casa, e aquele para onde o levamos, num emprego, num shopping, etc., contabiliza Daniel Casas Valle. E quando já não cabia no espaço urbano existente, o carro ajudou a esticá-lo para os subúrbios que, neste mesmo período, cresceram, de forma desordenada, e ganharam habitantes.

Acessibilidade à cidade

Em busca de habitação mais acessível, afastamo-nos do local de trabalho, e à luta pela equidade no acesso ao espaço público, junta-se, assim, a luta pela acessibilidade à própria cidade e uma outra ainda: a luta para levar a esses novos subúrbios e dormitórios a diversidade de usos que caracteriza, e atrai gente, à cidade. Gerir esta fragmentação, e os seus efeitos, é o grande desafio do urbanismo em Portugal, assumem os dois especialistas. Ciente de que não há receitas imediatas, Bruno Soares é adepto de uma política incremental. Passo a passo. Talvez nos seja possível imaginar uma vida urbana sem carros. Até chegar lá, é preciso conviver com ele e tomar medidas para o tornar menos necessário. A redução do preço do passe teve, por exemplo, um efeito importante. Mas teve os seus contrapontos.

O copo que se esvazia nos centros para onde deixamos de levar o carro enche outro. Nas periferias sobram ruas inóspitas, desenhadas para e deixadas à mercê do transporte individual, mesmo que este esteja lá parado, apenas, ou só as atravesse ao início da manhã e ao fim da tarde. Quem nelas vive, ainda que tenha a sorte de ter, em redor, os serviços e equipamentos necessários para o dia-a-dia – óptimos ingredientes para essa nova narrativa urbana que dá pelo nome de cidade de 15 minutos, aquela que se percorre a pé ou de bicicleta – responde a este ambiente inseguro, nada empático, enfiando-se num automóvel, se também puder. Sai da garagem, entra num parque de estacionamento.

A armadilha e os seus conflitos

Presos nesta armadilha, se um município pretender cortar estacionamento de proximidade para alargar passeios, plantar árvores, pôr umas floreiras ou uns bancos à sombra, onde velhos e novos se possam sentar, surgirão vozes de protesto. O mesmo se, por razões de segurança, se optar por diminuir a velocidade máxima de circulação: os residentes, normalmente, agradecem. Dentro de um carro, os transeuntes barafustam. A nossa perspectiva do espaço é diferente, consoante somos peões, condutores, ou passageiros, residentes ou forasteiros, lembra Bruno Soares.

Neste conflito, gerir expectativas pessoais e necessidades colectivas é um desafio para técnicos e políticos, mas implica também uma mudança profunda de enquadramento teórico, prático, e até ideológico. Para tudo isto, as palavras importam, também. Há uns anos, Paula Teles, engenheira do planeamento, afirmava, em entrevista ao PÚBLICO, que Portugal precisava de complementar o Código da Estrada com um Código da Rua, o que seria, por si só, uma revolução na forma como hierarquizamos o lugar de cada pessoa/veículo no espaço, pondo o peão no topo da segurança rodoviária e das preocupações dos planeadores, naquilo que seria, para usar a expressão de Bruno Soares, um regresso ao básico.

O caminho está a ser feito. Ainda não chegamos ao ponto, defendido em entrevista ao PÚBLICO por Matthew Baldwin, vice-director da Direcção Geral de Mobilidade e Transportes da União Europeia, de deixarmos de falar em utilizadores vulneráveis do espaço público, e tratarmos peões e pessoas em bicicleta como utilizadores valiosos (vulnerable vs valuable), que enriquecem a cidade. Mas a ANSR, no âmbito de uma estratégia de Visão Zero, está a mudar a abordagem à infra-estrutura urbana, onde se morre ainda demasiado, entre nós. E o Instituto da Mobilidade e Transportes produziu um manual técnico para o desenho de ruas urbanas, diferente do que já existia para estradas.

Sonhar com a proximidade

Ter referências técnicas é importante, mas Casas Valle considera mais importante ainda que o planeamento saiba escutar a rua, e usar a imaginação para resolver necessidades específicas. Nos “webinários” The Future Design of Streets (O design futuro das ruas) que organiza com Ivo Oliveira, da Universidade do Porto, este neerlandês tem dado voz a especialistas e agentes de mudança das mais diversas áreas e países. Nos vários debates disponíveis online, palavras como transportes ou mobilidade surgem par a par, em importância, com outras como acessibilidade, co-criação, acolhimento, proximidade. Uma palavra em torno da qual, aliás, um grupo de especialistas reunidos no Compromisso Cidade, está a desenvolver, em Portugal, um movimento de reflexão, multidisciplinar também, que teve um primeiro encontro em Aveiro, no início de Março.

Nessa reunião, David Sim, autor do livro Soft City (Cidade Suave), defendeu que as cidades precisam de reencontrar a sua vocação de lugar de encontro entre pessoas. Nas ruas em que a sociabilidade e a infra-estrutura verde, ou a azul, recuperam importância, abre-se, normalmente, espaço para essa aproximação, feita, melhor ainda, com prazer. O prazer das crianças recuperando, seguras, espaços informais de brincadeira, como defende a rede tutelada por Francesco Tonucci, ou o prazer de transeuntes a pé e de bicicleta, despertos para um espaço mais biodiverso – todos reparámos nos pássaros, durante os dias silenciosos da pandemia – e mais sócio-diverso, pela presença de novos e velhos, de mães (que tomam decisões de percurso em função dos filhos), de imigrantes e turistas, grupos que andam muito a pé.

Sociabilidade, biodiversidade e mobilidade sustentável retroalimentam-se, num ciclo virtuoso. São as Ruas Saudáveis, um referencial criado pela inglesa Lucy Saunders, mas são também as Ruas Habitáveis, de Donald e Bruce Appleyard. O autotransporte, a pé, de bicicleta, ou noutros meios de micro-mobilidade, ajuda-nos a exercitar o corpo, e resolve um conjunto considerável de necessidades de deslocação, mais curtas, consumindo menos espaço.

O transporte público precisa desse espaço, como precisa, também, para ganhar utilizadores, que as pessoas sintam conforto, nas ligações de casa à paragem, e da paragem ao destino, dizia ao PÚBLICO Lucy Saunders, em Setembro passado. Desenhada como um bem comum, acessível a gente de todas as condições e capacidades, a rua pode melhorar o grau de conectividade entre edifícios e pessoas, com um menor consumo de energia. Se queremos uma métrica para medir a eficiência das nossas cidades, e do seu sistema de transportes, talvez fosse bom não esquecer o básico.