Da ditadura à democracia: Neal Slavin fez o retrato da transformação de Portugal
Ainda jovem, o fotógrafo norte-americano Neal Slavin retratou o Portugal do fascismo, um país que descreve como “cinzento, triste, nostálgico”. Em 2016, já septuagenário, regressou e documentou as diferenças e similitudes dos “dois países”. A exposição Portugal/Saudade, que contém 100 imagens de Portugal pré e pós-revolução de Abril, pode ser vista em Vila Nova de Gaia, até final de Outubro.
O fotógrafo nova-iorquino Neal Slavin tinha 27 anos, em 1967, quando pisou pela primeira vez o solo do “pequeno país de que ninguém falava”. Esse país, Portugal, vivia, então, sob o jugo da ditadura fascista de Oliveira Salazar e “era cinzento, triste, nostálgico”, descreve, em entrevista ao P3, no recinto da World of Wine (Wow), em Vila Nova de Gaia, aquando da inauguração da exposição Portugal/Saudade, em Março de 2022. “[De 1967/68] lembro-me do cheiro das queimadas de campos para cultivo, do fumo das castanhas e das sardinhas”, contou ao PÚBLICO, em 2016. “Para onde quer que apontasse a minha câmara, conseguia boas fotografias.” Passados quase 50 anos, que país encontrou Neal Slavin? Que país fotografou?
Neal, hoje com mais de 80 anos, não veio à procura de “algo em concreto”, explicou. “Eu apenas sabia que tinha vivido em Portugal há 50 anos e que regressei. Este não podia ser o mesmo país.” Imaginava que a ditadura que terminou em 1974 teria mudado radicalmente a face do país. “Hoje, há democracia, Portugal pertence à União Europeia, é um país moderno, um país que não é pobre — era um país muito pobre quando cá vivi. Mas de que forma é que irei fotografar essa mudança? Essa era a grande questão.”
A exposição Portugal/Saudade, patente até 31 de Outubro na galeria World of Wine, é composta por 100 fotografias; 50 pertencem à colecção que realizou em 1967 e 68, a outra metade foi registada a partir de 2016, ao longo das diversas viagens que realizou pelo território português — com excepção das ilhas. Neal encontrou, passados 50 anos, um país diferente. “O mundo mudou e encolheu”, reflecte. “Hoje, a Nazaré parece-se com San Diego, Califórnia. Ou seja, as bombas de gasolina são iguais aqui e noutro lado do mundo, o que torna o nosso trabalho [enquanto fotógrafos] muito difícil. A globalização é, hoje, o principal inimigo do artista.” Como, então, distinguir a Nazaré de San Diego, do ponto de vista gráfico?
O nova-iorquino deparou-se, em 2016, com os mesmos desafios que enfrentou em 1967. “Nessa altura, tinha 27 anos e sentia-me ávido. Tinha uma câmara na mão, comecei a fotografar e as fotografias que fazia não tinham nada lá dentro. Eram insípidas.” Aquilo que desbloqueou Neal, em 1967, e que lhe permitiu realizar um trabalho marcante, foi a compreensão daquilo que acredita estar no cerne da identidade lusitana: a saudade. “Quando regressei, eu já sabia demasiado”, assume. Mas com todo o ruído da modernidade, da mudança à superfície, sentiu dificuldade em encontrar um ponto de vista. “Aos poucos, comecei a perceber que as coisas que eu pensei que tinham desaparecido, como a saudade, permaneciam. A saudade estava lá, mas algo tinha mudado. Não senti nas pessoas, em 2016, a desesperança que as caracterizava em 1968.” Terá mudado, na opinião do fotógrafo, o olhar dos portugueses sobre o futuro. “Há saudade sem desesperança. Mas o que é saudade, no fundo?”
Em busca de resposta sobre este ingrediente exclusivo da receita lusitana, a saudade, Neal Slavin decidiu realizar, em paralelo, uma longa-metragem documental, intitulada Saudade: A love letter to Portugal, também em exibição no Wow. “Nos anos 1990, eu realizava filmes e publicidade, mas foi algo que abandonei em 2000 ou 2001.” Este regresso inesperado à rodagem de filmes foi alavancado pelo seu galerista, que o desafiou a regressar a Portugal e fechar o ciclo que havia iniciado em 1968. Numa busca por respostas sobre a identidade e vivência portuguesas do século XXI, Neal entrevistou uma série de cidadãos anónimos e de personalidades da vida pública portuguesa, entre os quais os fadistas Carlos do Carmo e Mariza, o treinador de futebol Fernando Santos, o estilista Nuno Gama. “Filmar não é mais fácil do que fotografar”, explica. As imagens em movimento, as palavras, as expressões, porém, formam retratos de “natureza diferente”.
Na carta de amor que dirige à saudade, Slavin procura pelo significado da palavra na esperança de obter uma radiografia do âmago português, que considera “vulnerável”. “A palavra vulnerabilidade foi, na realidade, a palavra que estabeleceu a ponte entre aquilo que encontrei em 1968 e 2016”, explica. “Ninguém fala desta palavra e ela é fundamental na equação.” Encontrou vulnerabilidade no fado, uma expressão musical pela qual se apaixonou durante as visitas que dedicou à fotografia e à rodagem do documentário. “Eu identifico-me, intimamente, com essa vulnerabilidade. Eu sou vulnerável. Um artista tem de ser vulnerável para poder criar. É algo que eu não tenho de traduzir em palavras. Assim que percebi isso, todos os lugares para onde apontava a minha câmara continham essa vulnerabilidade, essa espiritualidade.” As imagens a cores que produziu no Portugal do século XXI contêm poucos indícios de temporalidade. “Eu não procuro fotografar coisas palpáveis. Eu procuro sempre captar algo que está no interior, algo que me dê indícios do que são as pessoas. É uma missão difícil.”
Apesar da abertura ao mundo, Portugal continua a ser “misterioso”, observa Slavin. “Existe sempre algo secreto, algo que os portugueses guardam para si mesmos.” “Uma espécie de lado negro, digamos”, diz, com um sorriso longínquo. As janelas pequenas, as cortinas corridas das casas portuguesas são um indício desse secretismo, adivinha. “Quando visito uma aldeia italiana, há sempre um ruído de fundo. Uma aldeia portuguesa, no entanto, é absolutamente silenciosa.”