A liberdade de parodiar o poder
Um livro que acrescenta novas personagens à barca de Gil Vicente. Agora, é de cruzeiro que se vai para o Inferno.
Isabel Zambujal começa por enviar uma carta ao escritor do Auto da Barca do Inferno, para lhe dizer que talvez o tivesse conhecido demasiado cedo. Tinha “apenas” 14 anos e achou Gil Vicente “um velho, muito velho, chato, muito chato”. A professora de Português conseguiu que o olhasse de forma diferente. “Passei a rir com os teus disparates, atrevimento e sentido de humor”, conta a autora nas primeiras páginas do livro.
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Isabel Zambujal começa por enviar uma carta ao escritor do Auto da Barca do Inferno, para lhe dizer que talvez o tivesse conhecido demasiado cedo. Tinha “apenas” 14 anos e achou Gil Vicente “um velho, muito velho, chato, muito chato”. A professora de Português conseguiu que o olhasse de forma diferente. “Passei a rir com os teus disparates, atrevimento e sentido de humor”, conta a autora nas primeiras páginas do livro.
Imagina ainda o “pai do teatro português” a sossegá-la pelo receio de estar a ir demasiado longe na paródia e ridicularização destas novas personagens: “Não sejas medrosa. Em pleno século XVI, critiquei o poder sem dó nem piedade. Fui odiado e ameaçado de morte. Sorte foi ter caído no goto da rainha e ela lá me foi safando.”
O Cais (onde chegam os mortos) e as personagens são adaptados ao tempo actual. “Do séc. XVI para o séc. XXI, o mundo sofreu enormes transformações, mas o ser humano continua cruel, mesquinho e hipócrita. Foi fácil encontrar Fidalgos, arrogantes e elitistas, ou Corregedores e Procuradores, corruptos e ambiciosos”, descreve Isabel Zambujal ao PÚBLICO. E acrescenta: “A minha preocupação principal foi a de respeitar as características e comportamentos das personagens de Gil Vicente e toda a movimentação no Cais. Além do espírito crítico e tom humorístico do autor.”
Agora, ou se embarca num paquete (para o Inferno) ou num veleiro (para o Paraíso). Tentem adivinhar qual o destino do Frade e a Moça, par reproduzido aqui e assim descrito: “Manuel Babriel e a jovem Florença cruzaram-se, pela primeira vez, num baptizado em que a estrondosa rapariga fora convidada para desempenhar o papel de madrinha. Ao vê-la aproximar-se em passo de dança da pia baptismal, o senhor prior sentiu o chão a fugir-lhe dos pés e o Diabo a entrar-lhe no corpo. A partir daquele segundo milagroso, nada na cerimónia correu como devia: o padre Manuel trocou o nome de Maria por Madalena e, em vez de despejar água benta na cabeça da menina, entornou-a no peito sequioso de Florença, debruçado sobre a pia.”
A adaptação de algumas personagens não foi fácil, como nos conta a também autora da colecção de viagens Um Saltinho a…: “Precisei de ser mais criativa no Onzeneiro, no Judeu e nos Quatros Cavaleiros. Por exemplo, no caso destes últimos, no contexto do Cruzeiro do Inferno, não fazia sentido que fossem transportados para o Paraíso pela promoção da fé cristã em terras de mouros. No Auto do Cruzeiro do Inferno, Os Quatro Cavaleiros vestem a pele de quatro soldados da paz. E, por salvarem vidas, também eles a cavalo, têm lugar reservado no veleiro de Angélico dos Santos Glória a caminho do Paraíso.”
Uma vez que o livro se destina a jovens estudantes, Isabel Zambujal achou “oportuno abordar temas como o bullying e a discriminação sexual”. Numa atitude didáctica, sugere no final do livro várias actividades aos alunos, entre elas, a encenação deste texto, mas também uma resposta de Gil Vicente à carta que lhe foi enviada ou o redesenho das imagens de Cátia Vidinhas, que assina com criatividade as ilustrações.
O talento e a crítica
Auto do Cruzeiro do Inferno conta ainda com prefácio de Isabel Stilwell, que contextualiza a obra de Gil Vicente num tom divertido, mas sem deixar de ser rigoroso. “O Auto da Barca do Inferno foi escrito para fazer D. Maria esboçar pelo menos um sorriso. Tinha 34 anos e estava muito doente, após ter dado à luz o seu décimo filho. Gil Vicente deu o seu melhor e a peça estreou-se em 1516, mais uma vez nos aposentos da rainha, que acabou por morrer no início do ano seguinte.”
Diz ainda a jornalista e escritora Stilwell que Gil Vicente, “com o seu talento mais do que provado, ganhou o direito de criticar tudo e todos, até a nobreza e o clero”. Uma liberdade de que Isabel Zambujal também faz uso. Por isso nos diz: “Limitei-me a seguir os passos do mestre.”