Em A Memoir Blue, o troféu mais reluzente é um abraço
Descrita como um “poema interactivo”, a obra da Cloisters Interactive é uma curtíssima viagem pelas memórias de Miriam, que nada para se reconciliar com a sua mãe.
As emoções de Miriam têm o peso de uma vida que a faz sentir um vazio. O espectro dessas sensações usam A Memoir Blue como veículo para chegar ao jogador, esperando que, pelo menos algumas, encontrem representação, uma chispa que nos faça reflectir sobre o caminho que percorremos.
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As emoções de Miriam têm o peso de uma vida que a faz sentir um vazio. O espectro dessas sensações usam A Memoir Blue como veículo para chegar ao jogador, esperando que, pelo menos algumas, encontrem representação, uma chispa que nos faça reflectir sobre o caminho que percorremos.
A protagonista começa a produção da Cloisters Interactive a ganhar uma medalha. Atleta consagrada, vê-se a muralha de microfones à sua frente, a inundação de flashes enchendo o ecrã de clarões. A natação deu-lhe uma casa forrada a troféus e presença na televisão. Mas a vida também lhe deu um vazio pouco resplandecente.
Nesse mesmo apartamento, Miriam encontra conforto e segurança suficientes num sofá para a sua mente ser inundada por memórias que nos permitem jogar fragmentos da sua existência. Não demora muito, contudo, para ficarmos cientes da abordagem surrealista e da água como temática transversal para representar a opressão e o sufoco.
Somos convidados, por exemplo, a experienciar uma viagem ao aquário com a sua mãe ou uma mudança de casa marcante. Vemos a mãe com a filha ao colo ou a trabalhar enquanto Miriam fica sozinha na divisão adjacente. Na natação, permanece na memória a pressão exercida pela mãe, os tais troféus que foram conquistados à lei do trabalho para fazer os outros sentir o travo da vitória.
A Memoir Blue é composto por estas vinhetas: comprar bilhetes para o comboio, uma viagem de ferry que ficou a latejar. Miriam era aprisionada enquanto vestia fatos emocionais que raramente lhe assentavam como uma luva. Na escola, um descontentamento idêntico. Esta pressão leva à destruição da mobília numa das cenas, ao atirar da touca por descontentamento e frustração. É a sensação de que a pressão da competição raramente encontrou uma lura em casa.
O jogo sabe perfeitamente que estas cenas precisavam de um momento narrativo como contrapeso. Num abraço entre mãe e filha, o peso dos seus mundos a colidir e a fundirem-se. Pelo jogador explode a lembrança de um abraço idêntico ou o saldo negativo de tal nunca ter sido possível. Ao jogarmos as memórias digitais de Miriam, estamos a reviver o que passámos analogicamente.
A obra publicada pela Annapurna Interactive só tinha a ganhar com uma longevidade prolongada. O argumento tinha a beneficiar se houvesse uma ligação mais alargada entre estes fragmentos. E importa relembrar que muito fica entregue à interpretação de quem joga. Se por um lado isso beneficia o jogo como um espelho, também o deixa vulnerável a pontos de interrogação que podem diluir a intensidade da mensagem.
Videojogo com laivos de novela gráfica, A Memoir Blue é descrito oficialmente como um “poema interactivo”. Assim, os processos de jogabilidade prestam-se a conduzir o cursor pelos cenários à procura de objectos com que interagir. E um toque num de dois botões coloca-o no próximo ponto de interesse. A jogabilidade não se senta à mesa onde a progressão é discutida.
Interagir com cubos de gelo, ajustar os botões de um rádio, rasgar papéis de publicidade no comboio, construir uma ponte colocando as tábuas no devido local, edificar e destruir o pódio; são momentos que tentam justificar a palavra “interactivo”, mas que são sempre liderados pelo “poema” que está a ser escrito.
A água que escorre pelo apartamento e os segmentos submersos, é um videojogo em tons de azul, imaginativo, que nos faz lembrar um terço do trabalho mais conhecido de Krzysztof Kieślowski. A Memoir Blue é um jogo bonito, evocativo, com um grafismo que encontra par na banda sonora que nunca se impõe como protagonista da história.
Na que foi para mim a cena mais marcante do jogo, a Cloisters Interactive coloca em cena duas versões da protagonista, edificando o antigo e o novo como metáfora para o percurso, aquilo em que se tornou. Dois estilos gráficos em simultâneo dão-lhe força, mãe e filha a quebrar barreiras numa relação tumultuosa de afastamento e de reunião antes da estocada final.
Quando chegamos ao fim daquela que pode bem ser uma montanha-russa emocional, fica a abordagem a temas sérios e tantas vezes ásperos, mas também o respeito com que foi feita. Se os destroços das memórias são um mergulho profundo em nós mesmos, o ponto final neste “poema interactivo” é a bolsa de oxigénio que espera à superfície. E se os troféus de Miriam são a representação de sucesso, jogar A Memoir Blue é a certeza de que há fotografias mais valiosas do que objectos resplandecentes com o nosso nome.