Sobem para 290 as queixas recebidas pela comissão que investiga abusos sexuais na Igreja
Comissão encontrou indícios de encobrimento de crimes por parte de bispos ainda no activo. Dos testemunhos validados, 16 casos que ainda não prescreveram foram encaminhados para o Ministério Público. Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa garante que todos os bispos vão aceitar reunir-se com comissão.
A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos de Menores na Igreja (CIEAMI) já validou, até esta terça-feira, um total de 290 depoimentos, em três meses de trabalho. As vítimas são sobretudo homens, tal como os agressores, na sua maioria religiosos.
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A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos de Menores na Igreja (CIEAMI) já validou, até esta terça-feira, um total de 290 depoimentos, em três meses de trabalho. As vítimas são sobretudo homens, tal como os agressores, na sua maioria religiosos.
Os testemunhos dizem respeito a abusos que terão sido cometidos desde 1950 e o universo pode ser, na verdade, ainda maior do que o reportado até ao momento, como indicou o coordenador da comissão, o pedopsiquiatra Pedro Strecht, em conferência de imprensa, em Lisboa, para balanço dos primeiros três meses de trabalho.
No último balanço, feito em Fevereiro, a CIEAMI dava conta de 214 depoimentos recebidos num mês. O coordenador confirmou que houve no passado “múltiplos casos de abuso” em que as vítimas contactavam com os agressores, por exemplo durante a catequese, confissão, nos escuteiros, em grupos de jovens ou noutras actividades.
“Confirma-se que nestas situações existem poucas queixas que levem a processos jurídicos que levem a condenações”, explicou o coordenador, frisando que muitos dos casos de abusos já prescreveram.
Dos testemunhos validados, 16 casos de abusos que ainda não prescreveram foram encaminhados para o Ministério Público (MP). A informação foi avançada pelo ex-ministro da Justiça Álvaro Laborinho Lúcio, que também integra a comissão. O juiz jubilado deu nota de que existe uma “troca constante de informação” entre o grupo de trabalho e o MP. “Os casos de dúvida são resolvidos a favor do envio para o MP.” Devido ao sigilo e ao anonimato dos testemunhos, aquilo que é enviado para o MP é “muito pouco palpável” e, por outro lado, “a falta de datas exactas” dificulta o processo de avaliação de prescrição (ou não) dos casos.
Vítimas são na maioria homens
De acordo com a socióloga Ana Nunes de Almeida, também membro da CIEAMI, a maioria das vítimas são homens, existindo também mulheres; encontram-se em “todos os grupos etários” (desde nascidos em 2009 a 1934); há queixas em todas as regiões do país; e as idades do primeiro abuso variam entre os dois e os 17 anos. Ainda quanto ao perfil da vítima, a socióloga acrescentou que há relatos de pessoas com todos os níveis de escolaridade, desde o ensino primário ao doutoramento.
Já no que respeita à origem dos testemunhos, a comissão já recebeu relatos não só de vítimas a viver em Portugal, mas também de emigrantes portugueses a residir em países da União Europeia, dos Estados Unidos, no Canadá e no México.
Há testemunhos de agressões ocorridas tanto em congregações, colégios e instituições religiosas, mas também em escolas da rede pública, confirmou Pedro Strecht, em concreto por pessoas ligadas ao ensino de disciplinas como a Educação Moral e Religiosa Católica. O coordenador do grupo de trabalho referiu também a existência de vítimas religiosas, tanto do sexo masculino como feminino.
O estudo demonstrou a existência de todo o tipo de abusos contemplados no guião previamente realizado. “Encontrámos todas as modalidades de abuso que contemplávamos no guião do inquérito, desde a exibição, manipulação, penetração, recolha de imagens do corpo, isoladamente ou em situação de abuso”, referiu Ana Nunes de Almeida, além do envio de mensagens escritas por telemóvel de “cariz sexual” e/ou “linguagem obscena”.
Apesar do número de depoimentos já recebidos, o grupo de trabalho acredita que muitas pessoas ainda não falaram por “medo, vergonha e culpa”, como disse Strecht. A CIEAMI recebeu também “menos de sete” testemunhos que não foram validados, tratando-se de inquéritos preenchidos com “insultos” e “disparates” e que obrigam a uma avaliação caso a caso para validação.
A comissão tem agora uma equipa científica a trabalhar na consulta dos arquivos da Igreja Católica Portuguesa, coordenada por Francisco Azevedo Mendes, da Universidade do Minho, que vai desenvolver o trabalho durante os próximos meses.
Comissão encontrou indícios de encobrimento de crimes por parte de bispos ainda no activo
A CIEAMI fez pedidos de entrevista a todos os 21 bispos das dioceses portuguesas. Até ao momento, cinco não deram qualquer resposta ao apelo para a colaboração e foram realizadas já 11 entrevistas, estando uma outra marcada para esta quarta-feira. Para as restantes quatro estão a ser “negociadas” as datas de entrevista.
Horas depois da conferência de imprensa, durante a tarde, o Observador noticiou que o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), D. José Ornelas, assegurou que todos os bispos em questão vão responder de forma positiva ao pedido da CIEAMI para uma reunião individual.
“O que foi combinado é que estas entrevistas que estão a ser feitas com as dioceses fossem agendadas para depois da reunião plenária dos bispos”, referiu o porta-voz de D. José Ornelas, bispo da diocese de Leiria-Fátima, citado no mesmo jornal, referindo-se à Assembleia Plenária da Conferência Episcopal Portuguesa, agendada para os dias 25, 26, 27 e 28 de Abril em Fátima.
Questionado pelos jornalistas sobre se existiram casos de encobrimento e ocultação de abusos sexuais de menores, Pedro Strecht confirmou que há indícios de que tenha existido essa tentativa por parte da hierarquia da Igreja, incluindo bispos ainda no activo. “Temos referência a bispos anteriores e bispos no activo”, disse. Mas a “prática [de abusos por parte de bispos] não” foi identificada, sublinhou.
Nestes casos em que se identificaram tentativas de encobrimentos houve “mecanismos de defesa, negação, projecção, deslocamento” nas instituições. Ou seja, pessoas que referiam que essa situação não teria acontecido com elas. “Se aconteceu, não foi comigo”, exemplificou.