Não há borracha que possa apagar a nossa História
Há muitas borrachas que tentam apagar a História de Portugal, a maior parte delas está nas mãos da direita, sempre pronta a apagar o que não convém. Felizmente, nenhuma dessas borrachas é mágica e, um dia, as acções cruéis dos portugueses serão tão indeléveis como as inovadoras e vanguardistas – enquanto isso não acontece, temos de continuar a afiar os lápis.
Por pragmatismo sociocultural, há um consenso a que, enquanto nação, urge chegar: é impossível apagar a História. Para isso, não é despropositado relembrar que a História estuda conjuntos de acções protagonizadas por pessoas em determinado tempo e espaço. Assim, independentemente da identificação político-ideológica, temos de abandonar o argumento de que determinado grupo de pessoas pretende apagar a História de Portugal, uma vez que não se muda o passado.
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Por pragmatismo sociocultural, há um consenso a que, enquanto nação, urge chegar: é impossível apagar a História. Para isso, não é despropositado relembrar que a História estuda conjuntos de acções protagonizadas por pessoas em determinado tempo e espaço. Assim, independentemente da identificação político-ideológica, temos de abandonar o argumento de que determinado grupo de pessoas pretende apagar a História de Portugal, uma vez que não se muda o passado.
Invariavelmente, esta afirmação é evocada pelas pessoas mais à direita, que entendem ser isso que a esquerda pretende – não é. Este ponto é fundamental para progredirmos no debate; caso contrário, estaremos anos e anos (como se tem verificado) a discutir as mesmas coisas sem honestidade intelectual, e, por conseguinte, sem razão.
E se não há borracha, nem mágica, que apague a História, esta tem sido escrita por muitos lápis, que, também não sendo mágicos, precisa de alguém que os use. Essas pessoas têm a mesma condição que as restantes: têm preferências que leva a interpretações. Assim, podemos admitir a existência de relatos históricos enviesados, ainda que (ou sobretudo) inconscientemente. Esta noção é fundamental para sermos mais eficazes enquanto nação.
Para isso, o ponto de partida é a concordância sobre a diferença entre História e Historiografia. Se a primeira é imutável, a segunda assume-se personalizável. Retomando e ajustando o argumento inicial, já se pode dar razão à direita: é verdade que parte da esquerda quer uma nova abordagem historiográfica à História de Portugal.
Importa, agora, perceber as razões. Esta vontade não acontece no vazio, não pretende apagar a história (já estabelecemos ser impossível) nem surge por não haver outros temas relevantes – uma deles é, ironicamente, não deixar que alguns factos permaneçam obliterados. Porque os nomes das coisas têm importância e porque ter consciência do nosso papel ajuda-nos, enquanto nação, a chegar mais longe, há que reconhecer o assalto nacional a outros povos. Entrar em negação ou atirar acontecimentos mais positivos para equilibrar a balança é pura alienação – não há comparação entre o progresso invocado e o sangue derramado.
O contra-argumento recorrente é que esta é uma versão historiográfica pessimista — não é. Por muito que não nos convenha, é verídico o papel preponderante dos portugueses na concepção e manutenção de rotas de escravatura; é verídico o terror perpetuado nas latitudes onde desembarcaram navegadores agora celebrados, eternizados e mitificados; é verídico que fomos à descoberta, mas descobrimos nada, pois as pessoas nunca se confessaram perdidas.
Só compreendendo que esta História também é nossa é que podemos partir para a discussão sobre exibição de símbolos que ainda hoje celebram as épocas acima descritas. Às actuais tentativas de reanimação do sonho (pesadelo) imperialista há que responder com a intolerância e a consciência: temos de parar de destratar os outros. Enquanto não o fazemos, milhares de pessoas são recordadas de uma cruel realidade que elas, sim, têm o direito de obliterar se assim o entenderem.
Por estas razões, é impensável estarmos a discutir a recuperação dos brasões do jardim da Praça do Império, tal como é incompreensível o nome dado ao espaço. Como são, também, inconcebíveis estas formas de celebração (topiária, toponímia, estatuária) de um ideário que, independentemente da “vertente positiva”, simboliza tantas atrocidades.
Ainda que para a maioria das pessoas isto não seja problemático, a justiça de uma sociedade verifica-se ao tratar todos e todas por igual; e não escolhendo privilegiar uma maioria, pois, quando isso acontece, há sempre um outro lado prejudicado.
Há muitas borrachas que tentam apagar a História de Portugal, a maior parte delas está nas mãos da direita, sempre pronta a apagar o que não convém. Felizmente, nenhuma dessas borrachas é mágica e, um dia, as acções cruéis dos portugueses serão tão indeléveis como as inovadoras e vanguardistas – enquanto isso não acontece, temos de continuar a afiar os lápis.