Que a barbárie não se repita

Se a barbárie é gerada na sociedade, a escola tem condições mínimas para lhe resistir, não podendo, por si mesma, defender as suas muralhas, embora o seu objetivo principal seja o de desbarbarizar a humanidade.

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Miguel Manso/arquivo

No período de 1959 a 1969, Theodor W. Adorno realizou conferências e deu entrevistas à rádio que viriam a ser publicadas, sob o título Educação e Emancipação, como ensaios sobre e educação política, entendida como educação para a emancipação, no quadro concetual da teoria crítica da Escola de Frankfurt, e cuja discussão é assombrosamente pertinente face à guerra na Ucrânia.

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No período de 1959 a 1969, Theodor W. Adorno realizou conferências e deu entrevistas à rádio que viriam a ser publicadas, sob o título Educação e Emancipação, como ensaios sobre e educação política, entendida como educação para a emancipação, no quadro concetual da teoria crítica da Escola de Frankfurt, e cuja discussão é assombrosamente pertinente face à guerra na Ucrânia.

Nas ideias de Adorno, presentes nos oito ensaios que o livro contém, enquanto formação cultural e experiência formativa, a educação tem de ser a memória da elaboração do passado, não como espaço vazio do discurso — ou como equívoco gritante entre culpa altamente fictícia e castigo altamente real, responsabilizando-se as vítimas pelos motivos do totalitarismo — mas como prática de autorreflexão, que exige uma pedagogia democrática, no sentido do esclarecimento.

A análise crítica do passado, que não pode ser esquecido nem desculpabilizado, mantém-se através da educação, para que a propaganda, na forma de manipulação racional do irracional, como reafirma o filósofo alemão, não seja privilégio dos totalitários.

Neste sentido, é essencial a formação de professores, exigindo-se-lhes uma sensibilidade intelectual e uma autoconscientização, para que realizem uma avaliação intelectual do seu trabalho, que ultrapasse a sua condição de meros profissionais, rompendo criticamente horizontes circunstanciais, pois “há que deixar a igreja na aldeia.”

Explorando tabus (sedimentos coletivos de representações em função de motivações subjetivas e objetivas) acerca da docência, Adorno reforça a ideia de Max Scheler de que educar é humanizar, mediante uma ação pedagógica adequada, pelo que o professor não pode ser o herdeiro nem do escriba nem do monge, nem tão-pouco da racionalidade estratégica que reduz o intelecto a um mero valor de troca.

Se a barbárie é gerada na sociedade, a escola tem condições mínimas para lhe resistir, não podendo, por si mesma, defender as suas muralhas, embora o seu objetivo principal seja o de desbarbarizar a humanidade, como realça no texto “A educação como barbárie,” no qual Adorno enuncia a seguinte tese: desbarbarizar tornou-se a questão mais urgente da educação, hoje em dia, isto é, não admitir uma agressividade primitiva, um ódio primitivo ou, na terminologia culta, um impulso de destruição.

Assim, a escola é decisiva na tentativa de superar a barbárie para a sobrevivência da humanidade, sem cair em formas de controlo, pois não se pode tirar às pessoas a sua espontaneidade, nem serem convertidas em “obedientes instrumentos da ordem vigente” (p. 156). Em nome da autoridade, a barbárie consiste, ainda nas palavras de Adorno, na prática de atos que anunciam a deformidade, o impulso destrutivo e a essência mutilada da maioria das pessoas, originando condições humanas indignas, através de atos de violência e não de “modos de agir politicamente refletidos. Se a educação está associada à produção de uma consciência verdadeira, em que a pessoa sai da sua menoridade, como Adorno sublinha, na linha do pensamento de Kant, é fundamental pensar que tal deve ocorrer, politicamente, numa democracia pensada como uma sociedade de pessoas emancipadas, conscientes, com a capacidade de pensar e de experienciar situações que exigem uma análise crítica.

Por último, Adorno aborda a questão da barbárie no texto “Educação pós-Auschwitz,” em que formula o axioma da não repetição de Auschwitz através da educação.

Esta exigência parte da constatação, tanto na década de 1960, quanto na de 2020, que a barbárie manter-se-á, se persistirem as condições que a tornam possível, pelo que faz parte do princípio civilizatório, com todas as suas formas de violência desumana ou de fúria agressiva. Neste caso, Adorno liga a educação à autorreflexão crítica, de modo a questionar toda e qualquer forma de violência, começando na educação de infância e continuando ao longo da vida, como forma de esclarecimento que produz um clima intelectual, cultural e social crítico, relativamente às condições que geram a barbárie.

Porém, tal tarefa exige não apenas pedagogia e conhecimento, mas também vínculos de compromisso, associados ao poder de reflexão que as pessoas têm na sociedade, reafirmando Adorno: o centro de toda a educação política dever ser que Auschwitz não se repita. Ou seja, que a educação contribua, conscientemente, para o esclarecimento e para a emancipação.


O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.