Barrigas de aluguer: um negócio que tem de acabar

Esperemos que na reconstrução difícil e na reconfiguração que obrigatoriamente toda a Europa vai ter de fazer, consigamos acabar também com este negócio que, afinal, não é mais do que um retrocesso civilizacional.

Foto
@designer.sandraf

Querida Ana,

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Querida Ana,

A crueldade das imagens que nos chegam da Ucrânia tornam difícil pensar noutra coisa que não no sofrimento imenso daquele povo, no horror pelo qual passam os que ficam, e no terror dos que procurando refúgio noutro lugar, deixando para trás os seus homens, as suas casas, a sua terra.

Como dizia uma amiga minha ucraniana já não é possível falar em vitória, porque mesmo com a esperança forte do fim da guerra, os ucranianos já perderam quase tudo e as feridas desta invasão tão cruel e absurda levarão gerações a fechar. Mas a determinação com que continuam a lutar faz-me acreditar que vão ser capazes de conquistar a liberdade e a integração num modelo democrático europeu pela qual dão a vida.

E, Ana, sei que agora pode parecer uma questão irrelevante, mas espero que nesse futuro que se quer próximo deixe de ser possível o negócio das barrigas de aluguer — que floresceu na Ucrânia à medida que outros países foram recusando a prática. Porque não tenho dúvida nenhuma de que permitir a exploração do corpo das mulheres de países mais pobres em benefício das famílias de países mais ricos é incompatível com o mundo que pretendem. É incompatível, também, com o mundo que desejamos para Portugal.

É evidente que, neste momento, tudo o que desejo aos portugueses que recorreram a este serviço é que consigam resgatar os seus bebés (biologicamente pertencem-lhes), e que estas crianças encontrem urgentemente todo o amor que merecem, sobretudo depois de um início de vida tão traumático. Retirados à nascença às mães (não desisto de as chamar assim) que os carregaram durante nove meses e os deram à luz, foram apanhados pela guerra e aguardam passaporte para o Ocidente em berços escondidos em refúgios subterrâneos, cuidados por funcionários de agências. Ana, as imagens daquelas centenas de berços de PVC transparente, alinhados como numa cadeia de produção de uma fábrica, são de tirar o fôlego, deixando à vista um comércio de centenas de crianças que tem de alertar as consciências.

Assim como as deve alertar a notícia da barriga de aluguer ucraniana que chegou a Portugal por intervenção do casal que contratou os seus serviços, para dar à luz no Hospital de S. João — apenas um dos casos que levou a criar uma suposta adenda extraordinária às regras de registo civil, num complicado imbróglio de legalidade duvidosa. Embora os casos particulares nos toquem sempre, e perante os factos consumados o importante é dar-lhes solução, não nos podemos esquecer que a lei portuguesa considera crime que alguém pague/receba por “emprestar” o seu útero, ou que de forma mais directa ou sub-reptícia um bebé seja transaccionado por dinheiro.

E é de dinheiro que falamos. Em 2020, uma reportagem da TVI referia que a contratação deste serviço valia pelo menos 40 mil euros, dos quais 350 euros/mês eram entregues à “barriga receptáculo”, com um prémio de 13.550 euros depois do parto, 15 mil euros no caso de gémeos. E embora as próprias mulheres entrevistadas referissem que o faziam de livre vontade, ninguém lembrava o telespectador de que, na altura, o salário mínimo na Ucrânia era de 112 euros, tornando incrivelmente aliciante esta nova categoria profissional. Com mais um detalhe arrepiante, Ana: a partir dos sete meses de gestação estas portadoras passavam a modo de “prisão domiciliária” num apartamento da agência, de forma a garantir que o “produto” estaria nas melhores condições no acto da entrega.

Por isso Ana, sim, esta é uma birra que merece ser feita.


Querida Mãe,

Obrigada por colocar por palavras o desconforto que tantos de nós têm sentido ao apercebermo-nos desta realidade. Sei que tendemos a achar que tudo é ‘um detalhe’ perante o que se vive neste momento na Ucrânia, mas nesta guerra luta-se por mais do que isso: luta-se por valores, por liberdade e contra a exploração de uma força (com mais meios), contra outra (com menos).

Esperemos que na reconstrução difícil e na reconfiguração que obrigatoriamente toda a Europa vai ter de fazer, consigamos acabar também com este negócio que, afinal, não é mais do que um retrocesso civilizacional. Porque hoje, não são só as mulheres que têm mais direitos, são também os bebés, mesmo antes de nascerem.


No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Mas, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram.