Carta aberta: apagar o “apagão fiscal”?

O sistema de combate ao branqueamento de capitais e criminalidade fiscal continua a ser ineficaz, não obstante o alarme social face ao “Apagão Fiscal”. É urgente a aprovação de medidas para impedir falhas no sistema de reporte das transferências para jurisdições offshore.

Senhores

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Senhores

Presidente da Assembleia da República

Primeiro-Ministro

Procuradora Geral da República e Presidente do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP)

Em 20 de Março de 2019, enviei à Senhora Procuradora-Geral da República uma comunicação relativa à investigação judicial sobre o chamado “Apagão Fiscal”. Que gerara alarme social, em 2016 e 2017, e merecera preocupação expressa do Parlamento Europeu no seu relatório sobre os Panama Papers.

Trata-se do Inquérito n.º 421/17.0TELSB, entregue à 9.ª secção do DIAP, no qual sou assistente. Em início de 2019 consultei o processo. Estando vinculada ao segredo de justiça, não podia revelar o que havia visto. Mas entendi falar do que NÃO havia visto: investigação!

O caso foi remetido à PGR em 2017 pelo então Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais (SEAF), o lamentavelmente recém-falecido Professor Doutor Fernando Rocha Andrade. O governante não ficara satisfeito com o que havia sido apurado em sede dos inquéritos internos que ordenara (AT e IGF) às transferências para offshores, entre 2011 e 2014, no montante de cerca de 10 mil milhões de euros. Transferências não registadas no sistema central da Autoridade Tributária e Aduaneira, inviabilizando assim qualquer controle, mesmo a posteriori. Nem, sequer, tinham sido publicados os dados agregados sobre tais transferências, como exigia a 3.ª directiva europeia de combate ao branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo, então em vigor.

Recordo que a publicação dos dados estatísticos se apurou, na AR, ter sido impedida pelo então SEAF Dr. Paulo Núncio – que veio a ter que o admitir, depois de denúncia pública por parte do então director-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), Dr. Azevedo Pereira.

Tais fluxos massivos para jurisdições offshore ocorreram ao mesmo tempo que a República Portuguesa se viu obrigada a endividar-se junto de instâncias internacionais.

Entre as principais entidades bancárias responsáveis estão o BES e o Montepio Geral, ambas depois expostas por práticas criminosas.

Depois de escrever à PGR, fui chamada em Abril de 2019 para um encontro com o Procurador-Adjunto e a Inspectora da PJ afectos ao inquérito. Falta de meios explicaria a inacção investigativa. Mas detectei também relutância em apurar eventuais indícios criminais subjacentes às decisões políticas.

Voltei a consultar o processo em finais de Dezembro de 2021: verifiquei que, na sequência do meu encontro com MP e PJ em 2019, haviam sido feitas mais algumas diligências. Mas logo tudo parou: a última diligência investigativa remonta a Junho de 2019!

Um processo iniciado pelo próprio Governo em 2017 já vai no terceiro responsável do MP a quem está confiado! No DIAP e não no DCIAP, faço notar! A Unidade de Combate à Corrupção é das mais afectadas pela falta de pessoal na PJ. Não admira, assim, a falta de impulso investigativo: nem sequer o ex-SEAF Paulo Núncio foi ouvido – atendendo até à sua experiência, antes como advogado de empresas, em criar veículos em paraísos fiscais. E apesar dos indícios de que um dos objectivos do “apagão fiscal” seria encobrir o papel da Zona Franca da Madeira – a SDM, concessionária da ZFM, chegou a accionar o Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, recusando a obrigação de facultar à AT o envio de informações sobre transferências de entidades licenciadas na ZFM.

Portugal é hoje o terceiro país europeu com maior parte da riqueza nacional parqueada em jurisdições offshore – logo depois de Chipre e Malta – segundo estudo recente da Comissão Europeia. Apenas no ano de 2020, voou de Portugal a soma colossal de quase sete mil milhões de euros, sem controlo fiscal ou anti branqueamento, sobretudo para Suíça, Emirados, Hong Kong, Macau e Singapura. Envolvendo transferências de cerca de 6000 empresas e 5000 indivíduos.

Isto acontece porque o sistema de combate ao branqueamento de capitais e criminalidade fiscal continua a ser ineficaz, não obstante o alarme social face ao “Apagão Fiscal”. De facto, o mecanismo de reporte facilita o branqueamento de capitais e a evasão fiscal.

Não obstante a alteração legal introduzida pelo n.º 11 do artigo 63.º-A da Lei Geral Tributária, o Banco de Portugal continua a não partilhar de forma eficaz com a Autoridade Tributária as comunicações de transferências para offshore reportadas pelos bancos, frequentemente com erros grosseiros, via Modelo 38. Isso impede que a AT cruze dados e as fiscalize a tempo e horas. O sistema, de facto, incentiva bancos e outras instituições financeiras, empresas e indivíduos a transferir recursos para paraísos fiscais, na falta de consequências legais ou tributárias.

Ao abrigo da Lei n.º 7/2021, a AT não pode sequer aplicar coimas a entidades responsáveis por omitirem milhões no preenchimento do Modelo 38. São comuns os erros de reporte: se notados, são “corrigidos” meses depois. Mas a AT não pode sancionar a entidade responsável se ela “nos cinco anos anteriores, não tiver sido condenada por decisão transitada em julgado”! É um fartar, vilanagem!

Face ao exposto, venho solicitar a V.ex.as.:

- A urgente coordenação de MJ, PGR e CSMP, para garantir meios humanos, técnicos e direcção estratégica ao inquérito judicial n.º 421/17.0TELSB (9ª secção DIAP), solicitado pelo Governo.

- A urgente aprovação por Governo e Assembleia da República de medidas para impedir falhas no sistema de reporte das transferências para jurisdições offshore; estabelecendo a obrigação legal de Banco de Portugal, AT e Unidade de Informação Financeira (UIF/PJ) partilharem dados em tempo útil, para cruzamento e efectivo controlo de tais operações.

- A aprovação pela AR de um imposto, cobrado à cabeça, sobre transferências de capitais para jurisdições com regimes preferenciais, por forma a desincentivá-las e habilitar Autoridade Tributária, Banco de Portugal e IUF a procederem ao escrutínio efectivo da origem, valores e legitimidade dessas transferências.

Informo V.ex.as. de que darei conhecimento desta comunicação às entidades europeias relevantes.

Ana Gomes

Embaixadora aposentada, ex-MPE