A hora de André Gide
No ano em que a sua obra passa ao domínio público, há três edições do grande autor francês. Dois romances do início do século XX, um deles em duas traduções distintas, que marcam o período de consagração do autor que viria a ser Prémio Nobel da Literatura em 1947, quatro anos antes da sua morte.
Ao longo de uma vida longa, decorrida entre 1869 e 1951, André Gide pôde conhecer ainda as dominantes estéticas que antecederam a eclosão da modernidade, como o simbolismo, e a posterior explosão dos modernismos. A sua existência atravessou ainda metade do século passado, um percurso que o levou a ser um dos nomes cimeiros da intelectualidade e da literatura francesas — e uma figura de referência na cultura ocidental, embora não isenta, como é óbvio, de censuras e mesmo de ferozes opositores (Mauriac, para citar apenas um). Mesmo um grande amigo de Gide, como Paul Valéry — “gostamos muito um do outro” (Cahiers I, Gallimard, 1973, ed. Judith Robinson) —, escrevia dele: “Gide agrada e desagrada, irrita e atrai” (Cahiers II, Gallimard, 1974, ed. Judith Robinson). André Gide ainda conheceu Paul Verlaine — que visitou, na companhia de Pierre Louÿs, numa das hospitalizações do velho fauno simbolista. Paludes, que não deixa de ter ainda marcas do simbolismo, é, no entanto, já uma desmontagem irónica e superadora da escola. André Gide viria a ser um dos autores que deram forma à modernidade, mas manteve uma irredutível independência em relação a estéticas e primados. Se o seu quadro ideológico motivou comparações com Proteu, o deus grego identificado com a mudança, a sua arte manteve uma salutar individualidade. Devemos ao poeta José Miguel Silva uma das mais impressivas e brilhantes evocações do autor, no seu poema André Gide: “O mais veloz corredor da sua geração, pelo menos/ no arranque, não admira que tenha chegado primeiro/ a muito lado. Mas tão cedo partia, invariavelmente,/ que nem louros nem medalhas, pois a prova ainda/ não começara. Sofria essa mania de correr por fora/ de qualquer certame, em mandatos espontâneos,/ auto-atribuídos.” (Últimos Poemas, Averno, 2017).