O vinho sem sulfuroso e a guerra na Ucrânia: uma resposta a Pedro Garcias

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Bruno Simões Castanheira

Começando pelo fim, o Pedro Garcias (PG) tem razão. Tal como ele escreve na última edição da Fugas (“Considerar um vinho sem sulfuroso como natural é o mesmo que dizer que a Rússia está a libertar a Ucrânia”), tudo o que se segue não passa de “uma leve irritação”. O que irrita mesmo são coisas sérias como a guerra na Ucrânia, um terramoto no Haiti ou deslizamentos de terra em Petrópolis, que causam tantas mortes inocentes e incalculável sofrimento.

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Começando pelo fim, o Pedro Garcias (PG) tem razão. Tal como ele escreve na última edição da Fugas (“Considerar um vinho sem sulfuroso como natural é o mesmo que dizer que a Rússia está a libertar a Ucrânia”), tudo o que se segue não passa de “uma leve irritação”. O que irrita mesmo são coisas sérias como a guerra na Ucrânia, um terramoto no Haiti ou deslizamentos de terra em Petrópolis, que causam tantas mortes inocentes e incalculável sofrimento.

Chateia, é rude mas verdade, o PG misturar tudo ao comparar vinhos com a realidade brutal de uma guerra. Por isso, é infeliz, para nós, o título que escreveu. Não se compreendem as considerações sobre a vida “dos defensores do conceito de vinho natural”, o que comem, bebem ou fumam, nem como o jornalista tem acesso a essa informação e se, possuindo-a, lhe cabe revelá-la.

Enfim, adiante. Como é normal, o PG não transcreveu todo o texto de apresentação do simplesmente… sem sulfuroso (quem quiser pode ler aqui). Mas, há sempre algum risco ao escolher umas frases e omitir outras. Algumas não transcritas falam da vinha, de nem sempre ser possível não adicionar sulfuroso, entre outros factos abordados pelo Pedro Garcias.

De qualquer forma, há aspetos que é preciso esclarecer.

1) Vinho natural. Uma parte do que escrevemos foi para explicar o que é um “vinho natural”. Isto é um rótulo! Não é para ser interpretado literalmente. Quando dizemos “vinho biológico” não pretendemos definir o que é biológico ou não, simplesmente referimo-nos a um vinho que foi, das uvas à garrafa, produzido segundo determinadas regras. Por exemplo, na vizinha Espanha, o termo usado é “ecológico” e ninguém perde tempo a interpretar a palavra. Sabe-se o que quer dizer, ninguém tem dúvidas. Exatamente o mesmo para os vinhos biodinâmicos. Não é preciso justificar/traduzir/interpretar o que é o “bio” e a “dinâmica”: são vinhos cultivados e produzidos segundo o caderno de encargos respetivo.

Evidentemente, o mesmo se passa no vinho natural. A palavra “natural” é apenas uma forma de catalogar, não implica, de forma alguma, que não exista intervenção humana. Querer afirmá-lo é até, perdoe-se, absurdo, pois ninguém imagina que as uvas iriam pelo seu próprio pé para a adega e que, sem qualquer intervenção, se transformariam em vinho, terminando este por “engarrafar-se”! Quando chamamos “soul” a um tipo de música, não quer dizer que seja a única que tem alma, nem chamamos “metal” a música feita por serralheiros.

Ao contrário de outras categorias de vinhos, os vinhos naturais não têm uma “definição oficial”, nem um caderno de encargos ou entidades de controle e certificação. Por essa razão, escrevemos na apresentação do simplesmente… sem sulfuroso sobre vinhos naturais e alguns dos conceitos que lhe estão ligados.

2) Vinho sem sulfuroso e vinho natural. Como referido antes, não há uma definição oficial de vinho natural. Uma das que nos parece mais acertada é a da VinNatur, associação criada e dirigida pelo vigneron italiano Angiolino Maule. Para Angiolino, e para nós, é muito claro que um vinho não é natural só por não ter sulfuroso adicionado. Por isso, escrevemos, na apresentação do simplesmente… sem sulfuroso, que “Os vinhos sem sulfuroso são como uma última etapa no caminho para criar vinhos naturais.” Última etapa, pois, antes é preciso ter uvas sãs que permitem ter um mosto mais são e que precisa de menos “ajuda”, dominar a vinificação e estágio com intervenção mínima. Com tudo isto “controlado”, chega-se à última etapa: avaliar o risco acrescido de deixar de adicionar sulfuroso e produzir um vinho natural, aquele em que nada é adicionado às uvas.

3) Diabolização do sulfuroso (dióxido de enxofre ou SO2). Tal como explicado, o vinho natural tem intervenção humana. E, claro, tudo começa na vinha onde há intervenção humana. Mas, simplesmente… não é comparável o que usamos na viticultura com o que adicionamos, ou não, ao vinho. Utilizando um exemplo do PG, seria o equivalente a, para consideramos um vinho do Porto “genuinamente” do Douro, ser obrigatório, para além da aguardente utilizada para parar a fermentação ter que ser destilada de vinhos durienses, usar nas vinhas produtos fitossanitários com origem na região!

Ultrapassado este tópico, quanto ao dióxido de enxofre não se trata de uma diabolização, apenas que não se quer adicionar nada ao vinho, incluindo sulfuroso. E bem estaríamos se o sulfuroso fosse o único aditivo que torna possível “a existência da maioria dos vinhos que conhecemos” como escreve PG. Só se fala de sulfurosos porque é o único cuja menção (a frase “contêm sulfitos”) é obrigatória por lei. Apesar disto, vale a pena relembrar que o dióxido de enxofre utilizado na indústria do vinho é obtido a partir do petróleo, num processo industrial nada simplista, antes deveras complexo, sendo uma parte do SO2 isolado neste processo co-responsável pelas chuvas ácidas. Tal como a flor de castanheiro, referida pelo PG e que é uma inovação recente, e promissora, com origem em investigação científica portuguesa, há muitos vignerons que defendem uma alternativa: a substituição do sulfuroso atualmente utilizado pelo “original”, de origem vulcânica, obtido por mineração.

4) Quanto às considerações morais de “pureza” ou “corromper a essência”, cada vigneron responde por si. Nós escrevemos da satisfação que nos é transmitida, até o Pedro o revela da sua experiência com o seu primeiro vinho sem sulfuroso, quando se consegue ter um bom vinho a que nada foi adicionado.

5) A durabilidade não é um dado adquirido para nenhum vinho, com ou sem sulfuroso adicionado. Nalguns vinhos (Beaujolais Nouveau é um exemplo) até nem é desejada. Como todos já experimentamos, há vinhos feitos com enologia “clássica” que, ao contrário das nossas expetativas, perdem todas as suas qualidades após anos de garrafa. Dito isto, há exemplos de vinhos sem sulfuroso adicionado que evoluem bastante bem em garrafa (um exemplo que conhecemos bem é Pierre Frick na Alsace, viticultura biológica desde 1970 e sem sulfuroso adicionado desde 1999).

Em jeito de conclusão, um vinho natural (não ter sulfuroso adicionado é apenas parte da questão) não só não se faz sozinho, como para ter sucesso é necessário ter uvas muito sãs e ter um bom conhecimento na adega para saber intervir pouco. E, mesmo com todas estas premissas, há anos em que isso é praticamente impossível e muitos vignerons adicionam algum sulfuroso, referindo esse facto na rotulagem. Mas, quando se consegue, hummm, simplesmente… beber um vinho natural, temos um prazer diferente, é outro nível de delicioso.

João Roseira, co-organizador do Simplesmente... Vinho


O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico