Quase metade das gravidezes no mundo não são intencionais. Guerra veio agravar a situação
Reltório da ONU mostra que cerca de 40% das mulheres sexualmente activas não usa métodos contraceptivos, em muitos casos por não poder decidir em relação a isso. “Número impressionante” de gestações não planeadas representa “um fracasso global” na garantia dos direitos das mulheres.
As gestações não planeadas representam quase metade do total de gravidezes no mundo, totalizando 121 milhões por ano, revela esta quarta-feira o Fundo das Nações Unidas para a População (FNUAP), que fala numa “crise negligenciada” global, agravada devido à covid-19 e a situações de conflito como a guerra na Ucrânia e no Afeganistão e crises humanitárias por todo o mundo.
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As gestações não planeadas representam quase metade do total de gravidezes no mundo, totalizando 121 milhões por ano, revela esta quarta-feira o Fundo das Nações Unidas para a População (FNUAP), que fala numa “crise negligenciada” global, agravada devido à covid-19 e a situações de conflito como a guerra na Ucrânia e no Afeganistão e crises humanitárias por todo o mundo.
“Quase metade de todas as gestações, num total de 121 milhões por ano, são indesejadas”, referem as autoras do estudo, sublinhando que, para as mulheres e meninas envolvidas, a escolha reprodutiva que mais altera as suas vidas – decidir quando engravidar (ou não) – “não é de todo uma opção sua”, alerta a agência da ONU no seu relatório anual sobre o Estado da População Mundial, este ano intitulado “Ver o Invisível: Por que é preciso agir na crise de gravidezes não planeadas”.
Para a directora do FNUAP, Natalia Kanem, o “número impressionante” de gravidezes não planeadas representa “um fracasso global” na garantia dos direitos humanos básicos das mulheres e meninas. “É um assunto pessoal, mas é também uma questão de saúde pública e, certamente, uma questão de direitos humanos”, sublinhou a responsável em conferência de imprensa.
O estudo aponta ainda a forte correlação entre o número de gravidezes não intencionais e a desigualdade de género. Portugal confirma esta correlação: sendo o 15.º país com pontuação mais favorável no índice de desigualdade de género, é também um dos países onde há menos casos de gravidezes não planeadas e interrupções voluntárias da gravidez.
Mais de 60% das gestações indesejadas terminam em aborto, estimando-se que 45% destas interrupções da gravidez sejam feitas sem condições de segurança. Os abortos inseguros provocaram a hospitalização de sete milhões de mulheres por ano e estima-se que causem 5% a 13% das mortes maternas em todo o mundo.
Nos países em desenvolvimento, os custos de tratamento estão calculados a 553 milhões de dólares (497,15 milhões de euros) por ano.
Impacto da guerra e da pandemia
Cenários de guerra e de emergência humanitária, como o que se vive na Ucrânia, criam condições para que as gestações não planeadas “aumentem ainda mais”. “Prevê-se que a guerra na Ucrânia e outros conflitos e crises no mundo aumentem as gravidezes não planeadas, à medida que se interrompe o acesso a contracepção e aumenta a violência sexual”, lê-se no documento.
O FNUAP cita estudos que indicam que mais de 20% das mulheres e meninas refugiadas enfrentam violência sexual. “Tem havido barreiras sérias para prevenir gravidezes não planeadas”, afirmou a directora executiva do FNUAP na conferência de imprensa de apresentação do relatório.
“Além das preocupações com violência sexual e tráfico de seres humanos, cerca de 250 mil mulheres na Ucrânia estavam grávidas quando a invasão começou. Dividindo por três, significa que 80 mil destas mulheres devem dar à luz no espaço de três meses, já tem havido muitos partos”, informa Natalia Kanem. “Não há condições de saúde seguras para estas mulheres e bebés.”
No Afeganistão, por exemplo, a desigualdade de género e o desgaste dos sistemas de saúde devido ao conflito levarão a cerca de 4,8 milhões de gestações não planeadas até 2025, o que “compromete a estabilidade, a paz e a recuperação geral do país”.
Por fim, também a pandemia agravou o acesso das mulheres a métodos contraceptivos. Segundo os cálculos do FNUAP, no primeiro ano da pandemia de covid-19, a interrupção no fornecimento de serviços e contraceptivos levou até 1,4 milhões de gravidezes não planeadas.
Pressão sobre maternidade
De acordo com os dados recolhidos, 257 milhões de mulheres que querem evitar uma gravidez não usam métodos contraceptivos modernos e seguros e quase um quarto não tem condições para recusar relações sexuais, desde contextos como o casamento ou relações abusivas até casos extremos, como a exploração para fins sexuais.
Em 47 países, cerca de 40% das mulheres sexualmente activas não usa qualquer método contraceptivo para evitar a gravidez, por motivos que vão desde a falta de acesso a métodos contraceptivos modernos até à falta de autonomia para tomar essa decisão.
Vários outros factores contribuem para esta proporção de gravidezes não planeadas: falta de cuidados de saúde e de informação sobre saúde sexual e reprodutiva, opções de contracepção desadequadas ao corpo e às circunstâncias das mulheres, normas tradicionais e estigma contra as mulheres que controlam os seus corpos e fertilidade, violência sexual e reprodução forçada, atitudes de julgamento e vergonha nos serviços de saúde, pobreza e estagnação económica, assim como desigualdade de género. “Todos estes factores reflectem a pressão que as sociedades exercem sobre as mulheres e meninas para que se tornem mães”, adverte o FNUAP.
Para a agência da ONU, esta situação tem “um grande impacto” na capacidade global para alcançar os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável, não apenas aqueles relacionados com a igualdade de género. A solução, de acordo com as especialistas por detrás do relatório, passa pelo acesso à educação, em particular para as raparigas; o reforço dos sistemas de saúde de forma a aumentar o acesso a cuidados adequados; distribuição, acesso e informação sobre métodos contraceptivos; e uma intervenção mais alargada com perspectiva de género, que contribua para a autonomia das mulheres e a sua maior participação na vida pública.
Em 2019, na grande Cimeira de Nairobi, dedicada à saúde sexual e reprodutiva, as Nações Unidas reforçaram o compromisso de atingir os três “zeros”: acabar com a necessidade não atendida de contraceptivos; acabar com as mortes maternas preveníveis (entre as quais se contam aquelas provocadas por gravidezes não intencionais); e acabar com a violência com base no género, onde se incluem frases como a mutilação genital feminina e os casamentos infantis.