Eles bebem tudo e não deixam nada
Os números falam por si. Só não vê quem não quer ver. Continuar a acreditar que a abertura de minas a céu aberto solucionará a crise climática e ecológica é tapar o sol com a peneira.
O Inverno em Portugal começou seco. No final do mês de Fevereiro, mais de 60% da massa continental do território encontrava-se em seca extrema, inclusive regiões tradicionalmente húmidas, como Trás-os-Montes. Aí, como reportou o PÚBLICO, os pastos, habitualmente pintados de verde, tingiram-se da cor da terra. A região transmontana, onde normalmente a água flui em abundância, este ano viu-se privada dos seus solos férteis, os animais ficaram sem pasto, as flores sem néctar, as abelhas sem alimento.
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O Inverno em Portugal começou seco. No final do mês de Fevereiro, mais de 60% da massa continental do território encontrava-se em seca extrema, inclusive regiões tradicionalmente húmidas, como Trás-os-Montes. Aí, como reportou o PÚBLICO, os pastos, habitualmente pintados de verde, tingiram-se da cor da terra. A região transmontana, onde normalmente a água flui em abundância, este ano viu-se privada dos seus solos férteis, os animais ficaram sem pasto, as flores sem néctar, as abelhas sem alimento.
O contexto de seca aliado à eclosão da guerra na Ucrânia, um dos principais produtores mundiais de cereais, fez subir drasticamente os custos de produção agrícola, deixando os produtores numa situação duplamente vulnerável. Esta vulnerabilidade — socioeconómica e ambiental — tornar-se-á norma caso não sejam tomadas medidas eficientes de adaptação e mitigação das alterações climáticas. Com efeito, Portugal é dos países europeus mais vulneráveis às alterações climáticas e prevê-se que as secas — assim como outros fenómenos climáticos extremos — se tornem cada vez mais frequentes e intensas. É particularmente dramático que uma região tão húmida como Trás-os-Montes atinja, em pleno Inverno, níveis de seca tão severos como os registados este ano. Mas mais dramático ainda é a insistência dos poderes políticos na abertura, nesta mesma região, de minas a céu aberto, altamente dependentes de recursos hídricos. Vejamos dois exemplos.
O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da Mina do Barroso — cujo contrato está nas mãos da multinacional britânica Savannah Resources e pelo qual a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) está sob investigação — prevê que a mina necessite cerca de 60 milhões de litros de água para o seu arranque e de 45 milhões de litros por mês durante os cerca de 12 anos em que estiver em operação. No resumo não técnico deste EIA pode ler-se que “em caso de carência hídrica, [a] água [será] captada directamente no rio Covas”. Visto que as secas se tornarão cada vez mais regulares, é possível que as águas do rio Covas — que hoje servem para irrigar os lameiros e os baldios — sejam sorvidas pela mina, caso esta avance, comprometendo, assim, o usufruto comum da água nesta aldeia.
Vinte e cinco quilómetros a norte de Covas do Barroso, em Morgade, prevê-se a a construção da Mina do Romano — cujo contrato de exploração foi entregue à empresa LusoRecursos, criticada pela sua “falta de profissionalismo”, nas palavras do então ministro do Ambiente, e cujo dono é um dos acusados da maior fraude portuguesa com fundos comunitários de que há memória. O EIA deste projecto (por duas vezes declarado “não conforme” pela APA) prevê que a mina necessite de 50 milhões de litros de água potável e 10 milhões de litros de água industrial por dia. Este projecto encontra-se actualmente consulta pública até dia 10 de Maio, graças à pressão feita pelas populações. Caso receba luz verde da APA, a mina ficará a apenas 20 quilómetros da barragem do Alto Rabagão e é dela que a empresa prevê retirar parte da água necessária para as suas operações. Esta barragem, que normalmente abastece as populações dos municípios de Boticas, Montalegre e Chaves, viu a sua capacidade reduzida a 20% este Inverno por causa da seca, tendo inclusive sido forçada a parar a produção de hidroelectricidade. Mas, a julgar pelas ambições dos decisores políticos, à já existente barragem e circundantes eólicas juntar-se-á uma mina sugadora de água e 2500 metros quadrados de painéis solares flutuantes, num futuro marcado por secas reiteradas.
Os números falam por si. Só não vê quem não quer ver. Continuar a acreditar que a abertura de minas a céu aberto solucionará a crise climática e ecológica é tapar o sol com a peneira. A nível mundial, as consequências ambientais, climáticas, sociais e humanas da mineração são mais do que conhecidas: esta indústria é das maiores produtoras de resíduos, a maioria dos quais altamente tóxicos; é responsável por 26% das emissões globais de carbono; por 20% dos impactos da poluição atmosférica sobre a saúde humana e, juntamente com a agricultura, representa quase 90% da perda de biodiversidade. Em Portugal, não é expectável que o longo e devastador historial desta indústria siga um rumo diferente. Como canta Zeca, eles “trazem no ventre despojos antigos”.
Caso avancem, estas explorações mineiras arrasarão aldeias inteiras, desalojando as suas populações e acabando com os seus modos de vida, e delapidarão zonas especialmente importantes para a conservação da biodiversidade: a Mina do Romano encontra-se em plena Reserva da Bioesfera Transfronteiriça Gerês/Xurês e a Mina do Barroso, na única região região portuguesa com classificação de Património Agrícola Mundial, dada pela ONU. É, por isso, urgente travar estes projectos, evitando que estes "vampiros bebam tudo, bebam tudo, bebam tudo, e não deixem nada”.