Investimento nas auto-estradas ajudou à litoralização e suburbanização do país

Depois de décadas de investimentos em infra-estruturas rodoviárias, sabemos hoje que o país foi construído de forma “pouco compatível” com as exigências de mobilidade do futuro. Portugal é o único país da Europa continental com uma rede de auto-estradas maior do que a rede ferroviária em operação.

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Portugal tem 30 centímetros de auto-estrada por habitante, o segundo maior rácio da Europa Adriano Miranda

O momento devia ser de festa, mas o clima não estava para grandes alegrias. O último troço de auto-estrada inaugurado em Portugal tem pouco mais de três meses de existência e conta apenas com 2,3 quilómetros, unindo o nó de Vilar Formoso à linha de fronteira na zona de Fuentes de Oñoro, província de Salamanca. Estávamos no final de Dezembro de 2021 e a A25 estava finalmente pronta na sua totalidade: da Barra, em Ílhavo, até à fronteira espanhola.

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O momento devia ser de festa, mas o clima não estava para grandes alegrias. O último troço de auto-estrada inaugurado em Portugal tem pouco mais de três meses de existência e conta apenas com 2,3 quilómetros, unindo o nó de Vilar Formoso à linha de fronteira na zona de Fuentes de Oñoro, província de Salamanca. Estávamos no final de Dezembro de 2021 e a A25 estava finalmente pronta na sua totalidade: da Barra, em Ílhavo, até à fronteira espanhola.

Ao contrário do que possa parecer, para os autarcas dos dois países a inauguração de uma nova infra-estrutura de transporte não trazia o progresso que desejavam, mas marcava mais uma machadada no desenvolvimento das vilas raianas de Vilar Formoso e Fuentes de Oñoro. O presidente da Câmara de Almeida, António Machado, afirmara então que aquele momento representava “mais um revés a que o território já não resiste” e que “talvez” seja parte da “última geração que viu crescer estas terras”.

O primeiro grande impacto já tinha sido sentido nos anos 90 com abertura de fronteiras, seguindo-se a adesão à moeda única que acabou com os negócios que trocavam escudos por pesetas e, nos últimos dois anos, a pandemia da covid-19 trouxe o encerramento temporário de fronteiras e a suspensão – quem sabe se permanente? – dos comboios internacionais Sud-expresso e Lusitânia que conectavam a região com a capital portuguesa, a capital espanhola e a fronteira francesa.

A partir daquele momento, Vilar Formoso e Fuentes de Oñoro começaram a ver passar ao largo milhares de viaturas que antes atravessavam o centro da eurocidade. E são muitas: o último relatório publicado do Observatório Transfronteiriço Espanha/Portugal, com dados referentes a 2017, refere que por ali passam em média 5572 veículos por dia, sendo três mil desses veículos ligeiros de passageiros. Feitas as contas, são dois milhões de passagens por ano que podem agora passar à margem das localidades transfronteiriças e dos seus negócios.

Com a inauguração deste troço, Portugal alcançou os 3080 quilómetros de rede de auto-estradas, comparado com os 2526 quilómetros de rede ferroviária actualmente em operação. Segundo dados da Pordata, tirando as insulares Malta e Chipre (que não têm qualquer quilómetro de ferrovia), Portugal é o único país da União Europeia com mais quilómetros de auto-estrada do que de vias-férreas operativas.

No que toca ao rácio de quilómetros por habitantes, Portugal está na segunda posição apenas atrás de Espanha – 30 centímetros por cada habitante – e está na quinta posição no que toca a número absoluto de quilómetros construídos. Hoje, por exemplo, é possível ir de Bragança ao Porto em pouco mais de duas horas, quando, sem auto-estradas, o tempo de viagem ficava à volta das cinco horas. Neste contexto não é difícil perceber que as infra-estruturas rodoviárias representam o mais importante pilar do sistema de transportes, movimentando o maior volume de passageiros e mercadorias.

Boom nos anos 90

Foi à boleia do espírito de modernização de um país que se integrava num bloco europeu na segunda metade dos anos 80 que as decisões políticas de investimento em infra-estruturas assentaram na construção de uma rede de vias rápidas que hoje abrange a quase totalidade do território continental. O estudo “Sistemas de transportes em Portugal”, promovido pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), mostra que o investimento resultou numa melhoria global da acessibilidade rodoviária de todas as 23 entidades intermunicipais permitindo um aumento dos níveis de eficiência, redução de custos logísticos e aumento da competitividade.

Mas nem tudo são boas notícias. Em 1991, Lisboa e Porto ficavam ligadas por uma via rápida – com a inauguração do último troço da A1 – mas, desde então, a rede espalhou-se à boleia da chegada dos fundos europeus e da multiplicação de parcerias público-privadas, algumas delas revelaram-se ruinosas para o Estado. O aumento do número de quilómetros de auto-estrada em Portugal registou uma taxa média de crescimento anual de 9% entre 1986 [ano de entrada na então CEE] e 1990, 17% nos anos 90, e 5% na primeira década do milénio. O investimento rodoviário foi também responsável por absorver a maioria dos fundos comunitários de apoio à modernização e desenvolvimento do país entre 1989 e 2013, representando percentagens entre os 26% e os 32% no total dos quatro programas. No entanto, segundo o estudo da FFMS, o benefício económico em torno da construção destas infra-estruturas tem sido menor com o tempo, o que pode mostrar que os últimos investimentos não foram tão necessários como os primeiros, tendo o país uma rede sobredimensionada face às suas reais necessidades.

À conversa com o PÚBLICO, a professora no ISEG e investigadora do REM/UECE Patrícia Melo defende que, ao contrário do que era apresentado pelos decisores políticos como um investimento que favorecia a coesão territorial, a complexa rede de auto-estradas que país construiu “tornou-o mais desigual” e “favoreceu fenómenos de suburbanização” [crescimento de uma cidade para os seus subúrbios] que ajudaram a alimentar a “nossa dependência do automóvel”.

Num estudo recente sobre os impactos deste tipo de vias rápidas em que Patrícia Melo participou, ficou demonstrado que a criação de uma auto-estrada “favorece muito” a localização de população ao longo do traçado, mas não chega a ter o mesmo efeito no que toca à criação de emprego. Na prática, a auto-estrada permitia que quem trabalhasse num grande centro urbano pudesse viver mais longe do local de trabalho, aumentando a distância do movimento pendular, mas não necessariamente o seu tempo. Basta pensar que, tirando Odemira cujo crescimento se deveu ao forte aumento da agricultura intensiva, os três concelhos que mais cresceram na última década se situam na periferia urbana de Lisboa, com destaque para Mafra, atravessada pela A8 e A21. Mafra, a 30 quilómetros de Lisboa, é também o único concelho do país que construiu e financiou a construção de uma auto-estrada, permitindo que um habitante da Ericeira chegue ao centro da capital em 40 minutos, cerca de meia hora menos do que seria possível sem esta infra-estrutura. Numa lógica oposta, os locais que são grandes pólos geradores de emprego estão a perder população, com particular destaque para Lisboa, Porto, Matosinhos e Oeiras.

A suburbanização potenciada pela dispersão populacional em torno de um determinado centro urbano cria custos “escondidos” que começam nos problemas na própria concepção de redes de transporte público: ao necessitar de criar redes mais extensas passando por áreas menos densas e voltadas para a utilização do carro é criado um défice crónico de exploração que é financiado por subsidiações estatais. E, ao dispersar a população, aproveitando a vantagem competitiva de ter vias rápidas que movimentem as pessoas para os centros das grandes cidades, é necessário aumentar as redes de infra-estruturas básicas (como água e esgotos) e tem de se dotar de serviços as novas áreas residenciais.

Na prática, “toda esta nova infra-estruturação combinada com densidades baixas faz com que os municípios dos subúrbios tenham grandes encargos”, refere Patrícia Melo. Aumenta também o congestionamento, a poluição sonora e atmosférica e a sinistralidade rodoviária, promovendo a deslocalização através de um “meio pouco eficiente” como o automóvel. Ainda assim, Patrícia Melo refere que o “aumento das assimetrias regionais não se esgota apenas na questão da expansão da rede de auto-estradas”. No ponto oposto, também os locais que perdem população ficam com infra-estruturas sobredimensionadas face às necessidades e podem mais tarde ter de abdicar de alguns serviços.

As próprias áreas metropolitanas de Lisboa e Porto “têm valores acima” das congéneres europeias no que toca à densidade da rede de auto-estradas, “em torno dos 30 a 40%”, algo que pode ser visto como um investimento “acima do racional económico em termos de eficiência”.

A investigadora refere também o facto de as previsões de tráfego de algumas auto-estradas em regime de Parceria Público Privada (PPP) – que permitiram ao Estado desenvolver a rede de auto-estradas, a partir da segunda metade dos anos 90, graças à passagem dos custos de construção e manutenção a empresas concessionárias que ficam com o benefício da exploração – terem sido “bastante empoladas” face à procura real que estas estradas iriam ter. Esta discrepância não é dissociável da “fase em que estávamos quando começámos com o regime de PPP”, uma vez que “a competência técnica do próprio Estado teve dificuldades em questionar e negociar os valores apresentados pelos concessionários”, algo que, mais tarde, tem vindo a ser revisto.

Depois de anos de investimento primordial na expansão da rede de auto-estradas, o Governo parece agora comprometido com a aposta na ferrovia através da modernização da rede existente e da criação de uma “auto-estrada” ferroviária Lisboa-Porto-Braga-Vigo. Agora o desafio, defende a investigadora, é reverter o “principal ‘custo’ de termos construído um país com padrões de mobilidade em benefício do carro” e que, só por si, “tem gerado um povoamento do território mais disperso” que potencia uma mobilidade “pouco compatível com as exigências do futuro”, conclui.


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