Como reconhecer o stress de guerra
O mundo acordou com a notícia de uma guerra a começar. A invasão da Ucrânia pela Rússia no rescaldo de dois anos de medidas de restrição por causa da covid-19 pode ser motivo para uma ansiedade difícil de gerir.
O sonante Stress de Guerra ou Perturbação de Stress Pós-Traumático pode surgir na sequência de qualquer evento traumático, presenciado ou não. A avaliação que cada pessoa faz perante uma ameaça é sempre subjectiva e influencia a sua resposta. Aquilo que pode ser traumático para um indivíduo, pode não ser para outro. Não obstante, num cenário marcado pela incerteza, o consonante Stress de Guerra não surge só. As perturbações da ansiedade e depressivas operam em palco e são co-protagonistas.
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O sonante Stress de Guerra ou Perturbação de Stress Pós-Traumático pode surgir na sequência de qualquer evento traumático, presenciado ou não. A avaliação que cada pessoa faz perante uma ameaça é sempre subjectiva e influencia a sua resposta. Aquilo que pode ser traumático para um indivíduo, pode não ser para outro. Não obstante, num cenário marcado pela incerteza, o consonante Stress de Guerra não surge só. As perturbações da ansiedade e depressivas operam em palco e são co-protagonistas.
Existem práticas que podemos incluir no dia-a-dia de modo a melhorar a nossa higiene em termos de saúde mental mas quando existe doença, como doença que é, exige um tratamento estruturado e especializado. A regra é: quanto mais cedo melhor para que uma doença aguda seja exactamente isso – uma doença aguda – que pode ser tratada e resolvida. É imperativo, que enquanto não conseguirmos travar outras guerras, pelo menos, trabalhemos em conjunto no sentido de salvaguardar o bem-estar geral do Homem. A Saúde Mental é uma prioridade neste contexto.
Desde o dia 24 de Fevereiro, que se multiplicaram as notícias, os relatos, as imagens, os vídeos, os testemunhos — em directo e em todas as redes — de um cenário que nos deixou arrebatados. Numa era digital, onde tudo tem um colorido próprio, distinto e nítido, em tempo real, onde notícias falsas coexistem lado a lado com as verdadeiras, a covid-19, que aterrorizou o mundo durante os últimos dois anos, acabava de perder a sua primazia para outra ameaça à Humanidade, a guerra nuclear. No Google Trends, o termo “covid” perdia a sua hegemonia para outro rival e protagonista do apocalipse, o termo “nuclear”. A ansiedade, o medo, a sensação de falta de controlo e a impotência voltavam a instalar-se ou agravavam-se.
A invasão da Ucrânia pela Rússia pode ser motivo de uma ansiedade difícil de gerir e surge num momento particular da História em que existe uma fragilidade prévia, o rescaldo de dois anos de medidas de contenção e de restrição que puseram em causa a saúde mental da população e que surgiram com um aumento crescente de pedidos de ajuda junto das equipas de saúde mental.
Ansiedade difícil de gerir
Num ambiente vigente que premiava o ou a melhor, que almejava a perfeição, que prestigiava a produtividade e produção em larga escala em detrimento da identidade e da excelência, deixava de haver, demasiadas vezes, espaço para a percepção de fraqueza associada à doença mental. As premissas mantiveram-se mas, subitamente, ao longo dos últimos dois anos, a doença mental deixou de ser um problema dos outros e, todos nós, directa ou indirectamente, pudemos perceber de perto (ou em nós próprios) o impacto da angústia e da ansiedade decorrente das circunstâncias que nos envolveram — no colega que não se adaptou ao teletrabalho, na vizinha simpática que ficava sempre com os netos ao final da tarde e agora nos cumprimenta taciturna nas escadas do prédio, na irmã que começou a ter “crises de ansiedade” e tem toda uma nova dificuldade em sair de casa depois de ter estado em confinamento. A doença mental perdeu assim o seu estatuto de estranheza e logrou um papel preponderante na opinião pública.
Doença mental
A ansiedade — emoção “normal”, comum e adaptativa que todos nós já sentimos e que nos permite na maioria dos cenários menos bons ser capazes de agir com maior clareza e rapidez — pode surgir como um problema num cenário como este. A intensidade desmedida, a incerteza vivida, o prolongamento no tempo e a impossibilidade de adivinhar um fim aumentam a chance de desenvolver doença, nomeadamente quando estamos perante eventos adversos. A eventualidade de uma Terceira Guerra Mundial neste ponto da História satisfaz todos estes critérios. A intensidade dos sintomas, a sua duração e o impacto dos mesmos no dia-a-dia são o que nos permite distinguir a emoção da doença.
Ansiedade, uma emoção normal
Muito se tem dito e investigado sobre o stress ao longo das últimas décadas desde que Hans Selye introduziu este conceito ainda em 1936, na sequência do trabalho de Claude Bernard, ao delinear três fases universais na resposta a uma ameaça, qualquer que ela seja, que nos ajuda compreender a interacção dinâmica entre a pessoa (com uma vulnerabilidade genética específica, uma personalidade, um contexto e aprendizagens e recursos previamente adquiridos que lhe permitem avaliar a situação) e o ambiente (em constante mudança). Uma primeira fase, a de alarme — em que o organismo se prepara para lutar ou fugir pondo ao seu dispor todos os seus mecanismos fisiológicos (a respiração surge mais rápida, o coração fica mais acelerado, os músculos tensos preparam-se para fugir ou lutar, desaparece a vontade de comer ou dormir). Nenhum organismo consegue manter eternamente esta primeira fase de excitação e, assim, segue-se uma segunda fase, a de adaptação em que se desenvolve uma resistência ao stress. Por fim, uma vez esgotadas as reservas de cada organismo, se a duração do agente nocivo for suficientemente longa, surge uma terceira fase, a de exaustão em que são notórias as consequências negativas da activação neuroendócrina constante na pessoa do Sistema Hipotálamo-Hipófise-Suprarrenal e do Sistema Nervoso Simpático (os suspeitos habituais). Sublinha-se uma palavra de consonância relativa à gravidade e mau prognóstico desta terceira fase, que excede os recursos pessoais, no funcionamento da pessoa. Ao invés de um aumento do rendimento e desempenho do indivíduo com o aumento do grau de estimulação, observamos uma desintegração catastrófica do desempenho e entramos no campo do stress patológico e da doença, tal como Yerkes-Dodson tão bem ilustrou.
A interacção entre a pessoa e o ambiente é dinâmica
Quando nos chega aos ouvidos o sonante Stress de Guerra, o apelido vulgarizado para a Perturbação de Stress Pós-Traumático, surgem-nos imagens dos veteranos regressados do Ultramar na voz dos nossos avós ou na imagem dos nossos pais. Para alguns veteranos, a guerra desdobrou-se muito além do seu fim, presa na memória em sons e cheiros.
A avaliação que cada pessoa faz perante uma ameaça é sempre subjectiva e influencia a sua resposta. Aquilo que pode ser um grande sobressalto, comoção ou transtorno para um indivíduo, pode não ser para outro e mesmo sendo traumático para ambos, ambos irão reagir de forma diferente. Não obstante, sabemos que após um evento traumático, presenciado ou não, real ou apenas antevisto, pode surgir doença.
As memórias vívidas e pesadelos, o evitamento de situações que trazem ao de cima a memória do evento, a sensação de alerta ou respostas de sobressalto constantes face a estímulos aparentemente inofensivos, a tristeza, irritabilidade ou incapacidade de sentir emoções como dantes, a falta de interesse, sono e concentração são as principais queixas do doente desanimado e da família que o acompanha.
Após um evento traumático pode surgir doença
Não obstante, num cenário marcado pela incerteza que vivemos hoje, o Stress de Guerra não surge só. As perturbações da ansiedade e depressivas são co-protagonistas. A ansiedade constante com ou sem sintomas físicos (como dores musculares, vertigens, dores de cabeça, dores de estômago ou diarreia), os problemas de sono e alterações da memória, a ansiedade que surge por picos e pode surgir acompanhada por vários sintomas físicos (o medo de perder o controlo ou morrer, palpitações, sensação que o ar não chega aos pulmões, suores, tremores, mãos dormentes, boca seca, sensação de desmaio), o evitamento de situações que antes não geravam desconforto (o sair de casa, andar em transportes públicos, ir a centros comerciais, fazer compras em supermercados, conduzir) e a repetição constante de comportamentos ou rituais (como verificar se a porta está bem fechada dezenas de vezes, limpar a casa exaustivamente ou lavar as mãos até fazer ferida) para aliviar a ansiedade são queixas que surgem também entre os doentes e as famílias preocupadas que urgem no agendamento de consulta.
Reconhecer os sinais de alarme
Existem práticas que podemos incluir no dia-a-dia de modo a melhorar a nossa higiene em termos de saúde mental mas quando existe doença, como doença que é, exige um tratamento estruturado e especializado. A regra é: quanto mais cedo melhor. É importante estarmos alerta para os sinais que todos devíamos conhecer. A ajuda deve partir do nosso círculo familiar, do nosso círculo de amigos, do nosso meio laboral, da nossa escola, para que a ajuda especializada chegue o quanto antes e uma doença aguda possa ser tratada e resolvida. Muitas vezes, na tentativa de resolver o problema, pede-se ajuda à vizinha que conhecemos desde sempre ou ao amigo de confiança que tem um comprimido que parece resultar, mas que torna permanente o problema.
A consulta de Psiquiatria ainda é um conceito assustador mas não tem de ser — não engorda, não envelhece nem desfeia. O estigma é um fenómeno que temos que desmistificar e combater.
Tratamento estruturado e especializado
É imperativo, que enquanto não conseguirmos travar outras guerras, pelo menos, trabalhemos em conjunto no sentido de salvaguardar o bem-estar geral do Homem. Durante o stress e após o stress, a saúde mental é uma prioridade neste contexto. Desconhecemos o impacto que esta guerra possa vir a acarretar no nosso modo de vida, mas conseguimos com muito maior certeza prever o impacto psicossocial que, sabemos para já e sem margem para dúvida, será significativo, principalmente numa população previamente vulnerável.
O medo da doença continua depois do vírus perder a sua força. A guerra continua a ressoar dentro da cabeça das pessoas depois das armas se calarem.
Médica psiquiatra, Clínica Fisiogaspar, Lisboa