“Genocídio” e genocídio
Invadir um país sem qualquer justificação é realmente um crime. E visar os líderes de uma nação é realmente um genocídio. Uma conversa vazia sobre atrocidades prepara o caminho para uma atrocidade total. Este é o estilo do regime de Putin.
- Em directo. Siga os últimos desenvolvimentos sobre a guerra na Ucrânia
- Guia visual: mapas, vídeos e imagens que explicam a guerra
- Especial: Guerra na Ucrânia
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
- Em directo. Siga os últimos desenvolvimentos sobre a guerra na Ucrânia
- Guia visual: mapas, vídeos e imagens que explicam a guerra
- Especial: Guerra na Ucrânia
O que significa Vladimir Putin acusar o governo ucraniano de “genocídio” e prometer uma “desnazificação” depois de conquistar o país? Significa, muito provavelmente, que ele tenciona prender os líderes políticos e cívicos da Ucrânia, realizar julgamentos de fachada e mandar executar pessoas inocentes.
São possíveis interpretações menos horríveis, mas que não são convincentes. É certo que a linguagem de Putin pode ser interpretada como propaganda para consumo doméstico russo. No uso soviético do termo, um nazi era o maior inimigo e quase toda a gente podia ser definida como tal. Talvez Putin queira reactivar o trauma da II Guerra Mundial e posicionar a Rússia como a vítima. No entanto, isto não parece muito correcto. A invasão foi iniciada com pouco crescendo de propaganda. Parece ter sido concebida como uma operação tão rápida que não necessitaria de qualquer justificação real.
Outra reacção razoável às palavras de Putin é notar que elas nos distraem das suas próprias práticas fascistas bastante numerosas. Putin é um ditador de extrema-direita admirado por supremacistas brancos em todo o mundo. Ele refere-se a antigos mitos de inocência como uma justificação para a dominação. A sua preferência pela violência deliberada em detrimento da razão e da lei recorda as fantasias da década de 1930. A conversa sobre atrocidades contra compatriotas do outro lado da fronteira foi o véu de propaganda usado por Hitler quando destruiu a Checoslováquia e a Polónia. As afirmações de Putin de que um país vizinho é uma criação ilegítima da ordem internacional também parecem plagiadas dos discursos de Hitler sobre esses dois países em 1938 e 1939. E, no entanto, isto ainda não nos leva ao coração da escuridão.
Outra abordagem à linguagem de Putin é apontar que é factualmente incorrecta enquanto descrição da política ucraniana. É claro que não houve qualquer genocídio contra falantes de russo levado a cabo pelas autoridades ucranianas, e nada que justifique minimamente a utilização de tal termo. Putin não apresentou quaisquer provas que sustentem a sua afirmação vazia, nem sequer forneceu qualquer ideia clara do que está a falar. A Ucrânia é um país bilingue com uma tolerância em torno da língua que é extremamente rara. Os falantes de russo na Ucrânia são mais livres em todos os aspectos do que os falantes de russo na Rússia. É importante que estes factos sejam estabelecidos. Mas torná-los claros ainda não é suficiente.
Temos também de reconhecer que, para um certo tipo de tirano, estar errado ao ponto da perversão é na verdade o objectivo. É grotesco, por exemplo, que Putin acuse o governo ucraniano de ser nazi. O Presidente da Ucrânia, Volodimir Zelensky, é um judeu com opiniões políticas moderadas. O seu avô lutou contra os alemães no Exército Vermelho; a família do seu avô foi assassinada no Holocausto. Foi eleito com mais de 70% dos votos por membros de uma sociedade multicultural que geralmente define a sua nação em termos cívicos. A extrema-direita obtém percentagens imperceptíveis do voto ucraniano e não desempenha qualquer papel no governo.
E é exactamente por isso que Putin fala em “desnazificar” a Ucrânia. Ele não quer fazer sentido. Ele quer privar estes conceitos cruciais – nazis e genocídio – de qualquer significado, para os desgastar, para os tornar impossíveis de usar de uma forma razoável. Ele quer tornar impossível que a II Guerra Mundial ou o Holocausto forneçam qualquer tipo de lições de moral geral. Palavras como “genocídio” ou “nazi” devem tornar-se brinquedos de um ditador pós-moderno. Devem significar o que ele quiser, e permitir-lhe fazer o que ele quiser. Isso é suficientemente mau, mas ainda não chegámos ao fundo do poço.
Vemos agora o que Putin quer realmente fazer. Ele não está simplesmente a esvaziar os conceitos de “genocídio” e “desnazificação”. Ele está, aparentemente, a planear gozar com as instituições judiciais criadas em torno desses conceitos. Esta parece ser a leitura mais adequada da sua promessa de “levar a tribunal aqueles que cometeram inúmeros crimes sangrentos contra civis”. Se as forças russas capturarem líderes políticos e cívicos ucranianos, o que parece mais provável é que ele os faça mostrarem-se julgados perante uma perversão de tribunal, e executados ou enviados para uma prisão de regime especial por um longo período. Parece que ele pretende deslegitimar toda a ideia de crimes de guerra – cometendo um verdadeiro crime de guerra em nome da punição de um fictício.
Invadir um país sem qualquer justificação é realmente um crime. E visar os líderes de uma nação é realmente um genocídio. Uma conversa vazia sobre atrocidades prepara o caminho para uma atrocidade total. Este é o estilo do regime de Putin: entrar nos conceitos e nas instituições que são necessários para uma vida pública decente, ridicularizá-los, e, dessa forma, abrir caminho ao niilismo assassino.
Tradução por Pedro Rios, não revista por Timothy Snyder. Artigo cedido ao PÚBLICO, originalmente publicado no blogue do autor