Emmanuel Carrère: “Não podemos apagar a luta de classes só porque as pessoas são simpáticas”

Um mergulho nas vidas duramente reais de uma equipa de mulheres trabalhadoras na limpeza de ferry boats. Com uma inquietação ética: como representar uma classe social que não é a nossa?

Foto
Ed Alcock / M.Y.O.P.

Esperámos 17 anos por uma sequência para La Moustache (Amor Suspeito), até agora a primeira e única experiência do escritor Emmanuel Carrère (n. 1957) na ficção cinematográfica (antes dele, já tinha assinado um documentário). Mas Ouistreham — Entre Dois Mundos não é uma sequência para o quotidiano tingido de angústias absurdas que Carrère (adaptando então um romance seu) explorava nesse filme centrado no bigode de Vincent Lindon. Também é uma adaptação de um livro, mas não é um livro de Carrère, mas de Florence Aubenas. E em vez de angústias absurdas, um mergulho em vidas duramente reais: o livro retrata a experiência de Aubenas, que durante meses integrou, incógnita, uma equipa de mulheres trabalhadoras na limpeza, entre outras coisas, dos ferry boats que ligam o norte de França (o cais de Ouistreham, na zona de Caen) ao sul de Inglaterra. No filme é Juliette Binoche que interpreta o duplo de Aubenas, a intelectual em missão undercover, e o fascínio do filme é ser tanto um mostruário — com aspectos documentais: Binoche é a única profissional do elenco, e as suas companheiras são actrizes amadoras, algumas recrutadas às actividades que desempenham no filme, como duplos de si próprias — de uma condição sócio-laboral precisa como uma história à beira do suspense (um suspense, digamos, “ético”), como se vivêssemos o filme na expectativa de ver a impostura desmascarada.