É a falta que me fazes

Não é que eu não seja capaz de rir, de gargalhar, até, de ir ao cinema. Não é que o meu corpo não seja capaz de executar movimentos, de atingir feitos, de dançar. Mas é a falta que me fazes.

Foto
"É a falta que me fazes e que rede social alguma preenche" Julia Caesar/Unsplash

É a falta que me faz.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

É a falta que me faz.

Digo, para ver sossegados no reflexo dos olhos das minhas amigas os meus próprios desconsolos, na esperança que cessem os seus esforçados mas inúteis conselhos. Falam-me de laranjas e metades de laranjas, que sou inteira e outras metáforas gastas, e eu já não sei se sou laranja, se não, se sou inteira, ou partida ou liquefeita. Se me basto, se me chego, se não mereço nada disto, ou se vai passar. A mim soa-me tudo a balelas, perdoem-me. Não sei grande coisa. A única coisa que sei é a falta que me fazes.

Não é que seja tanto vontade, ou mesmo saudade. Não é que eu não esteja bem, que não me levante com as duas pernas para ir à rua. Mas é a falta que me fazes. Não é que eu não me sustente intacta e independente e coisas que tal. É a falta que me fazes. É mais isso. Não é que eu não tenha a minha vida, tenho-a pois, e uma rica vida, graças a Deus. Não é que eu não seja capaz de rir, de gargalhar, até, de ir ao cinema. Não é que o meu corpo não seja capaz de executar movimentos, de atingir feitos, de dançar. Mas é a falta que me fazes. Não é que se me ligasses eu fosse a correr desbragada de braços abertos, até acho que me faria difícil, que punha a cara amuada, que isto também não é assim à vontade do freguês, ora a empurrares-me ora a puxares-me como se eu fosse um ioiô.

No fundo, é a falta que me fazes. É uma falta feita do afecto que me sinto estúpida só de pensar em trocar com qualquer outra pessoa. É uma falta feita dos teus temperos que nenhuma receita seguida escrupulosamente por outro alguma vez atingirá. É uma falta que se sente bem fundo, numa memória que humedece os olhos que se limpam depressa antes que alguém, Deus me livre, veja brotar de mim humanidade em forma líquida e comece logo a falar-me de laranjas inteiras.

É a falta que me fazes e que rede social alguma preenche. Ainda piora tudo, este maldito scroll, que só me revela o nosso futuro interrompido. Mães loiras a elevarem os filhos remelentos ao alto, pais com cara de cornos mansos enfiados em camisolas de lã a fazer match com toda a família. Concorrentes de reality shows de enormes nádegas debruçadas numa piscina em Cancún, promoções de biquínis, gurus do exercício físico numa quarta-feira de chuva com gabardines a revelar que são oito da manhã mas já venceram. E eu, o que é que eu venci? Só o plafond do cartão de crédito e ainda nem acabou o mês. Tudo me enerva, ando desgostosa, queixosa. O que me anda a dar? O que é isto? Pergunto-me, como se não soubesse muito bem que é a falta que me fazes. No outro dia, a conselho de uma amiga fui à astróloga, vê lá tu. Quis saber porque ando tão lamuriosa. Ela disse que era do regresso de Saturno. Não sei se é se não, antes queria que regressasses tu, eu de Saturno não me lembro, e falta nenhuma me faz.

Eu sei que disse que queria que fosses feliz e tu disseste-me que, quando se ama, se quer que o outro seja feliz, mas eu afinal se calhar não quero. Afinal se calhar prefiro que estejas miserável, se puder ser. Ou pelo menos que eu te faça tanta falta como tu me fazes.

Não é tanto querer ligar-te a contar disto ou daquilo. Passo bem sem telefonemas, já então passava, agora ainda mais, que a tecnologia nos quer cada vez menos emotivos. Andamos a acelerar as vozes uns dos outros no WhatsApp, porque não nos permitimos os pequenos silêncios, as pequenas hesitações. Hesitar é humano e não queremos cá perder tempo com isso. Estamos sempre a querer que tudo acabe mas, e quando acaba? Queremos voltar atrás. Agora passo a vida a escutar os teus áudios em velocidade normal.

É a falta que me fazes quando ando a deambular entre prateleiras do supermercado e que me leva, assim de repente, a desatar num choro esquisito e inoportuno diante da polpa de tomate.

É a falta que fazes, um buraco que não se preenche, nem com os ânimos das rezas e das religiões. O estendal vazio sem as tuas boxers penduradas, o individual que ponho na mesa do jantar, agora submetido à sua condição. Pronto, são estas coisas em que agora me deu para reparar. Não é nada demais, eu estou bem, a sério, é só uma impressão na garganta, aquela dor vinda sabe-se lá de onde, um ou outro soco na almofada, a incapacidade de lidar com o escuro. Isto não sei bem se tem cura, mas, pelo menos, tem nome. É a falta que me fazes.