Agressão russa à Ucrânia: capitalismo?
Será que na Rússia de Putin existem de uma maneira clara e transparente direitos de propriedade, bem como os contratos e o seu cumprimento têm enquadramento legal apropriado para as partes? E será ainda que o “capitalismo” de Putin tem algo de concorrencial, sem dúvida outra caraterística do verdadeiro capitalismo? É óbvio que a resposta só pode ser rotundamente negativa.
A invasão russa da Ucrânia fez com que o termo capitalismo aparecesse também na praça pública portuguesa associado à ditadura de Vladimir Putin. “O PCP sublinha as declarações de Putin que, refletindo a posição da Rússia como país capitalista...” (extrato de comunicado reproduzido no Expresso, 2022.03.04). É compreensível que o Partido Comunista Português (bem como outras organizações e personalidades, mas pouco interessa para o caso) pretenda confundir conceitos como este e utilizá-los de forma abusiva, procurando desviar a atenção da gravidade da agressão militar à Ucrânia e da sua posição de facto de não condenação. Convém, no entanto, pôr os pontos nos ii.
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A invasão russa da Ucrânia fez com que o termo capitalismo aparecesse também na praça pública portuguesa associado à ditadura de Vladimir Putin. “O PCP sublinha as declarações de Putin que, refletindo a posição da Rússia como país capitalista...” (extrato de comunicado reproduzido no Expresso, 2022.03.04). É compreensível que o Partido Comunista Português (bem como outras organizações e personalidades, mas pouco interessa para o caso) pretenda confundir conceitos como este e utilizá-los de forma abusiva, procurando desviar a atenção da gravidade da agressão militar à Ucrânia e da sua posição de facto de não condenação. Convém, no entanto, pôr os pontos nos ii.
Tal como Joseph Schumpeter (1883-1950), que foi, reconhecidamente, um dos que melhor entendeu a essência e o funcionamento do capitalismo, salientou de forma muito clara: “Vê-se afirmar como uma constante nas sociedades capitalistas e, em particular, no seio dos grupos sociais mais diretamente ligados ao desenvolvimento do capitalismo, uma oposição de princípio às aventuras bélicas, à expansão militar, à diplomacia secreta, aos armamentos e aos exércitos de profissão, bem como aos privilégios das hierarquias militares” (em Imperialismo e Classes Sociais, ed. francesa Champs/Flammarion, p. 116). Em qualquer destes aspetos, o regime de Putin não podia ser mais oposto ao capitalismo!
Mas será que na Rússia de Putin existem de uma maneira clara e transparente direitos de propriedade, bem como os contratos e o seu cumprimento têm enquadramento legal apropriado para as partes, o que, tal como sabemos desde Adam Smith, no século XVIII, são pilares fundamentais do desenvolvimento do capitalismo? É óbvio que a resposta só pode ser rotundamente negativa. O poder de Putin e do grupo que o rodeia assenta, não num Estado de direito em qualquer das suas dimensões, mas num imenso e sistemático roubo dos ativos da Rússia. Dentro deste grupo de cleptocratas não há quaisquer regras nem leis a não ser a obediência a Putin, e quem não o fizer será preso, envenenado ou morto, mesmo que vá para o exílio. Para alguns tratar-se-á de uma variante do chamado capitalismo “crony”, ou seja, um capitalismo de compadrio que, em larga escala, utiliza o aparelho de Estado em benefício próprio, com caraterísticas altamente mafiosas e raízes profundas na criminalidade tanto na Rússia como fora dela. Em fevereiro de 2022, a situação podia estar longe de ser a ideal, mas na Ucrânia, o início da luta contra este tipo de grupos e indivíduos corruptos em 2014, traduzindo-se, entre outras coisas, numa maior aproximação ao Ocidente, é sem dúvida uma das razões que levou à agressão de Putin, pois o exemplo da Ucrânia podia alastrar.
Mas será ainda que o “capitalismo” de Putin tem algo de concorrencial, sem dúvida outra caraterística do verdadeiro capitalismo? Obviamente que não. O atual regime da Rússia assenta, por parte desse pequeno grupo exclusivo, formado por oligarcas, no mais escandaloso aproveitamento extrativista da riqueza do país, em particular do petróleo e do gás, mas não só. Segundo dados para 2019, fornecidos pelo OEC (Observatório para a Complexidade Económica), as exportações russas de petróleo, gás e carvão representaram 58,5% do total, devendo ainda considerar-se que trigo, ferro, ouro, platina, alumínio, madeira serrada e níquel tinham presença significativa (sempre superior a 1% nesta pauta em cada caso para o mesmo ano), enquanto os fertilizantes também relevantes se distribuíam por várias subcategorias. Como Daren Acemoglu e James A. Robinson mostraram, na sua obra publicada de 2012, o extrativismo, através das instituições políticas opressivas que lhe correspondem, é um dos principais fatores que leva ao falhanço das nações e à criação de sociedades não inclusivas, isto é, mais desiguais a todos os níveis. Apesar disto, os regimes que se enquadram nesta lógica podem manter-se por longos períodos, graças a programas de assistência a vastos setores, só possíveis devido ao maná petrolífero ou outro, frequentemente associados à repressão política e à agressividade nacionalista face ao exterior.
O regime comercial da Rússia de Putin, de que descrevemos em traços gerais o lado exportação, tem gerado significativos superavit, levando a uma grande acumulação de divisas estrangeiras (na ordem das várias centenas – 420, no final de 2021 – de milhares de milhões de euros). Como demonstram os 22 anos de Putin no poder, esta acumulação de riqueza não serve nenhuma restruturação da economia russa ou da sua melhoria qualitativa (considerando a elevação do bem-estar da população), antes pelo contrário, serve para financiar mais armamento e prosseguir objetivos belicistas e imperialistas, perigosos para o resto da humanidade. Aliás, vários países que se enquadram no mesmo tipo de lógica extrativista caraterizam-se igualmente por uma grande agressividade, quer em relação aos seus vizinhos, quer também aos seus próprios povos (o caso do petróleo é ainda o mais significativo, veja-se Iraque, Irão, Arábia Saudita, Líbia, Venezuela, etc.). Apenas países mais pequenos como Kuwait, Abu Dhabi ou Dubai podem ter lógicas algo diferentes, mas de modo nenhum isso chega para contrariar a tendência.
Considerando a importância da energia para o desenvolvimento, não é aceitável que os EUA e a UE tenham convivido meio século com uma situação em que tais regimes subsistem e mesmo se expandem (de facto, desde o início da década de 1970, este mercado deixou de ser genuíno, tornando-se sobre-determinado, entre outros, por fatores de natureza política e militar). Só uma visão curta e limitada destes processos o permitiu, apesar dos choques a que temos sido ciclicamente submetidos, prejudicando consumidores e outros produtores. Não extraindo as devidas lições da experiência histórica, bem evidenciadas por Albert O. Hirschman na sua obra O Poder Nacional e a Estrutura do Comércio Externo (1945), onde analisou as práticas comerciais do regime nazi nos Balcãs com vista a condicionar as políticas e subjugar os governos destes países (replicadas por Putin na região contígua com as suas guerras do gás nos anos 2000), chegou-se ao ponto de a União Europeia poder ficar altamente dependente do fornecimento de energia pela Rússia. O abandono agora anunciado por vários países da UE, entre eles a Alemanha, destas políticas de exposição à dependência energética por parte deste tipo de regimes é positivo, tem custos certamente, mas tem ganhos estratégicos e só peca por ser tardio.
Por ironia da história, a atual Rússia de Putin está bem caraterizada no trabalho publicado em 1890 por Friedrich Engels sobre a política externa do czarismo (texto cancelado de uma forma cínica aos russos por Staline, antes das grandes purgas dos anos 1930; os dois textos são hoje facilmente acessíveis através da internet). Aí a Rússia é apresentada como aquilo que também é hoje: o esteio da reação e do imperialismo na Europa e no mundo, sempre particularmente tentada, sem qualquer escrúpulo, pelo aventureirismo militar, revelando total insensibilidade aos imensos sofrimentos e às consequências que tal possa causar. Perante todas estas evidências, é inaceitável que a NATO, neste momento, pareça não se ter preparado devidamente para dar um apoio mais efetivo ao povo e ao governo ucranianos que, numa situação de grande desigualdade, resistem e lutam com enorme valentia, em nome de todos os que desejam a liberdade, por um mundo mais digno e decente.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico