Como poetas negras, elas mostram a “realidade racista” de Portugal
Gisela Casimiro, Maíra Zenun e Raquel Lima são três poetas negras que afirmam as suas identidades e autodeterminação através do trabalho poético, ao mesmo tempo que expõem a “realidade racista” de Portugal. A propósito do Dia Mundial da Poesia e do Dia Mundial de Luta contra a Discriminação Racial, que se assinalam hoje, lançámos a questão: a poesia pode ser uma “ferramenta de luta contra o racismo” e a discriminação?
“A poesia é quase um escudo para mim. Eu me fortaleço, eu me protejo com ela": é assim que Maíra Zenun, 39 anos, percepciona o seu trabalho poético. E não é a única poeta negra a utilizar a poesia para partilhar a realidade e vivência em Portugal, “um país racista”. Gisela Casimiro, 37 anos, Raquel Lima, com 39, e Maíra Zenun são três poetas pertencentes à União Negra das Artes (UNA), fundada em 2021 para promover e proporcionar a representatividade negra nas artes e cultura portuguesas. Apesar de terem outros ofícios, a poesia não deixa de ser uma das maiores paixões das escritoras e um meio para contarem as suas histórias e realidades como mulheres negras em Portugal. Esta segunda-feira, 21 de Março, assinalam-se o Dia Mundial da Poesia e também o Dia Mundial de Luta contra a Discriminação Racial, pretexto para uma conversa sobre a cultura e literatura portuguesas, no geral, e a poesia da autoria de escritoras negras e de outras minorias étnicas, em particular.
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“A poesia é quase um escudo para mim. Eu me fortaleço, eu me protejo com ela": é assim que Maíra Zenun, 39 anos, percepciona o seu trabalho poético. E não é a única poeta negra a utilizar a poesia para partilhar a realidade e vivência em Portugal, “um país racista”. Gisela Casimiro, 37 anos, Raquel Lima, com 39, e Maíra Zenun são três poetas pertencentes à União Negra das Artes (UNA), fundada em 2021 para promover e proporcionar a representatividade negra nas artes e cultura portuguesas. Apesar de terem outros ofícios, a poesia não deixa de ser uma das maiores paixões das escritoras e um meio para contarem as suas histórias e realidades como mulheres negras em Portugal. Esta segunda-feira, 21 de Março, assinalam-se o Dia Mundial da Poesia e também o Dia Mundial de Luta contra a Discriminação Racial, pretexto para uma conversa sobre a cultura e literatura portuguesas, no geral, e a poesia da autoria de escritoras negras e de outras minorias étnicas, em particular.
Como mulheres negras, Gisela, Maíra e Raquel passam por situações de racismo e discriminação no quotidiano em Portugal, que Raquel Lima, poeta, arte-educadora e investigadora natural de Lisboa, descreve como um “país negacionista”. Segundo Gisela Casimiro, até “estamos mais sistémicos” no que diz respeito ao racismo, afirmando que “é muito fácil querer passar uma imagem anti-racista, mas, quando se é obrigado a sê-lo, revelam-se outras coisas”. Maíra Zenun, que nasceu no Rio de Janeiro e veio para Portugal em 2015, concorda, afirmando que desde o surgimento do partido Chega é “menos vergonhoso [a sociedade portuguesa] expor o seu racismo, a sua lógica racista”.
Segundo Zenun, “o racismo manifesta-se em diversas e distintas formas”, desde o questionamento e desvalorização das pessoas negras até à “violência física”. A poeta brasileira admite ser sempre “questionada como um corpo que está fora do lugar, no espaço académico e também no espaço artístico”.
A discriminação racial também se sente na cultura. Gisela Casimiro, artista e escritora natural da Guiné-Bissau, a viver em Portugal desde 1988, diz ao P3 que é comum nesta área “não se querer pagar aos artistas [negros] ou não se querer pagar o mesmo” a estes, acrescentando que acabam por ser as “últimas pessoas a ser chamadas para integrar projectos”. Raquel Lima, que, além da UNA, integra o Núcleo Antirracista de Coimbra (NAC) e a associação Yanda Panafrikanu, acredita que a cultura é uma “área elitista e que não é tão acessível a todas as comunidades negras”. Historicamente, recorda, o trabalho das mulheres negras é “apagado”, “apropriado” e “obliterado do panorama cultural e artístico”.
“O país não reconhece que esses bairros [como a Cova da Moura] e essas comunidades [negras] produzem coisas maravilhosas e não assumem isso como parte da sua identidade cultural, o que é triste”, salienta Maíra.
Além da discriminação assente no racismo, como poetas também vêem o seu ofício desvalorizado, consideram. Raquel Lima participa em poetry slams desde 2008 e publicou em 2019 o primeiro livro (e audiolivro), Ingenuidade Inocência Ignorância, com 24 poemas escritos ao longo de dez anos, descrevendo-o como o “fim de uma etapa da sua vida”. Para a poeta de 39 anos, a poesia “tem vindo a ser democratizada”, embora não sejam “valorizados todos os tipos de poeta e poesia”.
Maíra Zenun, também educadora (tendo participado no Grupo EducAR), produtora cultural e activista, concorda, admitindo que a poesia “dá trabalho”, o qual “não é valorizado” nem “incentivado”. A sociedade não valoriza o poeta como “alguém que come, dorme, paga contas e talvez precisa de sobreviver dessa actividade.” Zenun escreveu um livro, Receita para podar felicidade, com edição independente, e publicou textos poéticos nos blogues Flores de Maio e Dicionário bantu em cartas de amor…, na antologia intitulada Volta para a tua terra, entre outros meios. O próximo projecto poético é o livro Atlântico, pela Urutau, e já está em processo de edição.
Já Gisela, que publicou o primeiro livro de poesia, Erosão, em 2018, considera que o poeta é valorizado. Porém, admite que os portugueses têm uma ideia do que é “um poeta ou uma poeta de língua portuguesa” – tipicamente caucasianos –, o que faz com que poetas negros não sejam reconhecidos. “Seria importante ouvir essas vozes [negras] porque elas contam as suas histórias pessoais, mas também a história desses países e, obviamente, deste também”, salienta.
Maíra Zenun refere que tem havido, em Portugal, um “movimento de reconhecimento da poesia marginal”, e que iniciativas como o Festival de Poesia de Lisboa têm ajudado a divulgar e fortalecer o trabalho de “autores racializados”. Para além disso, instituições, como a UNA, a Afrolis – Associação Cultural, o Grupo EducAR , o Instituto da Mulher Negra em Portugal (INMUNE) e a Associação de Mulheres Negras, Africanas e Afro-descendentes em Portugal (Femafro) têm sido “fundamentais para o reconhecimento do trabalho de um conjunto de artistas negros que estão na sociedade portuguesa”, que “não valoriza” nem “reconhece a produção artística poética de pessoas racializadas como uma produção de valor, coerente, bonita”, refere ao P3 a poeta brasileira.
A poesia no combate à discriminação racial
Na óptica de Maíra, a poesia, tal como “qualquer tipo de produção artística ou intelectual” que “aborde a realidade racista da sociedade portuguesa”, é uma “ferramenta de luta contra o racismo” e a discriminação. Ao utilizar a poesia para “gritar as dores” e para falar sobre a sua realidade e a dos que “estão à sua volta”, a poeta brasileira consegue mostrar o olhar que tem “sobre a vida e sobre a sociedade portuguesa”. “Poder fazer poesia e falar de afecto, falar de luta”, é uma “estratégia de luta” e de “sobrevivência”, revela.
Ao percepcionar a poesia como um “espaço de afirmação enquanto sujeito político”, onde se pode “trabalhar a nossa subjectividade em diálogo com a sociedade”, Raquel Lima acredita que usar este meio literário como “ferramenta pedagógica, política, ética, estética e de construção de sujeitos políticos” pode combater a discriminação racial. Além disso, é importante reconhecer o poder político que a poesia (e toda a literatura) tem para os autores negros, graças a uma “tradição” que sempre a associou e à literatura a “formas de afirmação política e libertação do jugo colonial”.
Gisela Casimiro vê a poesia como “uma forma de denunciar situações, chamar a atenção para elas”, e de os poetas negros “contarem a sua própria narrativa”. Contudo, alerta, “pode ser deixada a um canto”. Apesar de nos poder “tocar” e “inspirar à acção”, não serve de muito se as “acções [das pessoas] não forem de acordo com isso”.
Para Maíra Zenun, ver outras poetas negras falarem sobre os mesmos temas fá-la perceber que “não está sozinha, que não é uma coisa da sua cabeça, que é uma demanda colectiva”. “Quando as pessoas negras ou de uma minoria étnica se afirmam, dizem o que pensam, escrevem o que querem e circulam nos lugares que lhes fazem sentido, com consciência de raça, classe e de género e atentas para as diferentes opressões sociais, geram dinâmicas autónomas de autodeterminação, reconhecimento e influência que poderão contribuir para o combate às discriminações a que estão sujeitas, assim como as comunidades das quais fazem parte”, conclui Raquel Lima.
Texto editado por Ana Maria Henriques