A vida da poesia
Como uma obstinação ou uma crença, repetiu sem fim um lema – viver a poesia, viver a vida dos poemas
O meu encontro com o Gastão Cruz deu-se por intermédio do Luís Miguel Nava. Com a morte do Luís Miguel aproximámo-nos mais, em concreto no projecto de realizar a vontade testamentária do poeta precocemente desaparecido e pôr de pé a Fundação com o seu nome.
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O meu encontro com o Gastão Cruz deu-se por intermédio do Luís Miguel Nava. Com a morte do Luís Miguel aproximámo-nos mais, em concreto no projecto de realizar a vontade testamentária do poeta precocemente desaparecido e pôr de pé a Fundação com o seu nome.
Como uma obstinação ou uma crença, repetiu sem fim um lema – viver a poesia, viver a vida dos poemas. Não por acaso deu ao seu último livro de ensaios o título de ressonância pessoana, A vida da poesia.
A palavra rigor não era para ele lugar-comum, nem coisa vã. Pôs em prática como poucos esse princípio, nos poemas que escreveu, nos ensaios sobre poesia, nos recitais que dirigiu e no trabalho com os actores no teatro. A revista Relâmpago era programa aberto na correnteza dos dias. Telefonemas sem fim, às vezes a pequena discordância à volta de nomes e versos. Atento aos seus contemporâneos, Gastão não abdicava de um cânone muito seu (Carlos de Oliveira, Ruy Belo, Luiza Neto Jorge, …). Nesse panteão, Carlos de Oliveira, com quem conviveu, era assumidamente um mentor, como explicitou no texto “Que lhe diremos mestre?” ou no belíssimo poema de homenagem “Substância escura”.
O nosso diálogo permanente na programação dos números da Relâmpago mostrou-me como tantas vezes se rendia e ia acolhendo vozes novas em relação às quais poderia em algum momento ter manifestado alguma resistência. Havia nele uma espécie de vocação para o magistério poético em relação aos nomes que iam sendo revelados. Na linha dos poetas ensaístas destaco, a par das leituras pontuais sobre os poetas de eleição, as visões panorâmicas da poesia moderna e contemporânea. Gastão Cruz foi um excelente leitor em perspectiva da história da poesia portuguesa.
Aprendi muito com o Gastão. Em concreto sobre o peso e sentido da aspereza no poema. Um pouco no sentido cabralino. Aprendi isso: como o poema vive num difícil equilíbrio entre a melodia e a lâmina exposta, uma espécie de fulgor inciso de metros e sílabas. Aprendi sobre o que se entreabre e distende no aparente desabrigo dos intervalos. E isso está na sua obra poética: tudo é corpo e palavra. Muitas vezes ele gostava de ler os seus poemas e de dar a chave dos seus versos quando o poema parecia mais abstracto. Falava dos lugares. Falava do tempo. Pouco a pouco as difusas sombras dos versos iam clareando...
Convivi com o Gastão em Londres, em Lisboa, mas o lugar onde mais próximo o vi da escrita do poema foi na sua terra, ou melhor na praia de Faro, espécie de ilha em que a cidade se prolonga. Nessa praia, tantas vezes passámos os verões. E todos os verões voltava à infância que ali se abria, como na ria os corpos sob o céu claro.
Nas noites, com o vagar de um ritual, íamos à cidade e percorríamos, ano após ano, essas ruas de memória, onde versos coincidiam com nomes. Isso também está nos seus livros, sobretudo nos últimos. Sim, os nomes foram feitos para com eles nascermos: uma rua de Portugal, um qualquer exíguo jardim, o de todas as infâncias, e um largo, o de S. Francisco. Voltávamos à ilha. Muitas vezes o tempo doía. No poema apareceria a duna refletida na água sem tempo.