Vitaly Mansky, cineasta russo nascido na Ucrânia: “Já não vivo na União Soviética que regressou entretanto”
Vitaly Mansky, cineasta documental, é hoje “artista non grata” para o regime de Putin, que desmonta nos seus filmes mais recentes. Conversa (por Zoom) com o autor de As Testemunhas de Putin e O Paraíso de Gorbachev.
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Vitaly Mansky começa As Testemunhas de Putin com imagens do dia de Ano Novo de 2000, em que o então Presidente russo, Boris Ieltsin, cedeu interinamente os comandos do país a Vladimir Putin, em antecipação a uma campanha eleitoral que, três meses mais tarde, confirmou o ex-agente do KGB como governante maior da Federação Russa.
Vinte e dois anos depois, Mansky (Lviv, 1963), cineasta documental, ex-director da guilda de cinema documental russa (que ajudou a formar em 2009), responsável do festival itinerante ArtDocFest, vive e trabalha na Letónia, onde se auto-exilou em 2014. Em breve conversa com o PÚBLICO, acompanhando a estreia portuguesa de As Testemunhas de Putin e O Paraíso de Gorbachev no serviço de streaming Filmin, mostra-se satisfeito com essa decisão – “pelo menos mantive a minha dignidade”, dirá o cineasta através de uma tradutora. “Já não vivo na União Soviética que regressou entretanto.”
A referência ao “regresso da União Soviética” tem algo de ironia amarga, porque, para Mansky, Putin está a devolver a Rússia a esses velhos tempos – “a Rússia acha-se um império, acha-se uma potência, e para quem acha isso a queda da URSS foi uma tragédia”. Para este russo nascido no território que é hoje a Ucrânia, o conflito que vivemos entre as forças de Putin e aquela república independente é a consequência dessa vertente saudosista, totalitária, que nunca desapareceu verdadeiramente. E o seu cinema, como ele próprio diz, mudou com isso.
De um modo muito evidente: nos seus últimos trabalhos, Vitaly Mansky não hesita em colocar-se “dentro” do próprio filme. Under the Sun (2015) explora o conflito ético que sente ao aceitar fazer um filme de propaganda para a Coreia do Norte com intenções de o subverter; O Paraíso de Gorbachev (2020) vê-o a dialogar (sempre em off) com Mikhail Gorbatchov sobre o actual momento político; e As Testemunhas de Putin (2018) inclui um sem-número de imagens da sua própria família e tem qualquer coisa de mea culpa pelo papel que desempenhou na eleição de Putin quando trabalhava no canal estatal Rossiya-1.
“São filmes que têm tudo a ver com o modo como vejo o mundo”, diz ao PÚBLICO por Zoom. “Com o modo como me sinto quando os faço. Prefiro – e penso que a maior parte do público também – não fazer parte dos meus próprios filmes. Mas as coisas mudam, as pessoas mudam, e tudo mudou.” Explica que é importante que os filmes que faz saiam “de dentro para fora”, assumam o seu investimento pessoal e a sua própria posição, porque é também isso que é o cinema documental: “Ir ao encontro de algo que seja humano, de uma realidade que não é inventada.” Numa pequena “farpa” contra a ideia das “bolhas” de “fake news” que a URSS impunha e que Putin está a instaurar de novo – porque a realidade, diz, “é dura, e não podemos negá-lo”, “e o verdadeiro artista quer mostrar essa verdade humana.”
Circuitos paralelos
Mansky assume que os filmes que faz hoje – aos quais se devem somar Close Relations, de 2016, sobre o modo como a sua própria família se divide sobre a questão ucraniana – são também tentativas de “expiar” a culpa que sente por se ter deixado iludir com a “utopia” democrática. São ainda uma maneira de ultrapassar os seus medos pessoais – e igualmente os medos que sente no mundo. “Se não fizer isto, a vida não tem sentido,” explica. “Não posso fazer filmes que não levem em conta o que me rodeia. Sei que não posso mudar o mundo, mas não posso ficar parado a ver as coisas acontecer sem tentar fazer algo.”
Embora a sua obra tenha sido premiada repetidamente no seu país natal e seja membro de várias organizações oficiais de cinema, os seus trabalhos mais recentes são hoje “filmes non gratos” na Rússia, onde não são mostrados oficialmente. Sim, Vitaly Mansky sente-se “ofendido” e “um pouco triste” por isso. Mas, por outro lado, sabe que, “pelos circuitos paralelos” – samizdat, os “circuitos subterrâneos” por onde as obras proibidas circulam de mão em mão –, os seus “filmes foram vistos por dez milhões de pessoas”. “Isso deixa-me feliz, porque me diz que há interesse e há gente que pensa como eu.” E fá-lo pensar, diz, em outros artistas cuja obra foi “suprimida” em vida pelas autoridades russas – como Aleksandr Soljenítsin, o autor do Arquipélago de Gulag, ou o cantautor Vladimir Vysotsky. “É isto o que um artista faz.”